O Globo
A Constituição define as funções das Forças
Armadas: “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes constitucionais” e, por
iniciativa de qualquer dos Poderes, “garantia da lei e da ordem”. Reunidos logo
após o encerramento da ditadura militar, os constituintes pretendiam vincular
os homens em armas à proteção do sistema democrático. Hoje, sob o comando de
Bolsonaro, uma facção fardada flerta com o golpismo. O Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) colabora involuntariamente com os ensaios golpistas ao
conduzir, à revelia do texto constitucional, um debate sobre a segurança das
urnas com o Ministério da Defesa.
A articulação golpista de Bolsonaro ganhou forma operacional em março de 2021, com a ascensão de Walter Braga Netto ao cargo de ministro da Defesa e a simultânea substituição dos três altos comandantes militares. Edson Pujol, o comandante demitido do Exército, confrontara o presidente ao declarar que as Forças Armadas são instituição de Estado, não de governo ou de partidos. Depois da represália, os fardados aceitaram participar da retórica golpista emanada do Planalto.
A bandeira da “intervenção militar
constitucional” foi desfraldada em agosto de 2015, antes mesmo do impeachment
de Dilma Rousseff, quando um grupelho de apoiadores do então deputado Jair
Bolsonaro montou acampamento diante do Comando Militar do Sudeste, em São
Paulo. Seis anos mais tarde, no rastro da demissão de Pujol, ganhou uma narrativa
ideológica expressa em duas notas oficiais.
A primeira, assinada por Braga Netto e
pelos três novos comandantes militares, destinada a repudiar declarações
democráticas do senador Omar Aziz, acrescentava às funções das Forças Armadas a
missão de defender “a liberdade do povo brasileiro”. A segunda, firmada apenas
pelo ministro da Defesa, simulava desmentir suas próprias declarações golpistas
apenas para reiterá-las, por meio da mesma senha.
Liberdade é noção aberta à interpretação
ideológica. Segundo Lênin liberdade é o regime dos sovietes, e segundo
Bolsonaro é seu próprio governo, mas imune ao controle constitucional do
Supremo Tribunal Federal (STF). A “reinterpretação” da Constituição produzida
pelos chefes militares indica que uma facção fardada, curvando-se aos impulsos
aventureiros do capitão subversivo alçado à Presidência, renunciou ao princípio
da separação entre os quartéis e a política.
Depois do ato 1, a troca dos comandos
militares, e do ato 2, a formulação da narrativa golpista sobre “a liberdade do
povo brasileiro”, desenrola-se o ato 3, a fabricação de um pretexto tático.
Trata-se de elevar os ataques retóricos bolsonaristas sobre a segurança das
urnas eletrônicas ao estatuto de contestação institucional oriunda das Forças
Armadas. Do nada, como nuvem plúmbea em céu claro, uma sombra oficial de
suspeição passou a recobrir os mecanismos de votação e apuração que asseguram
processos eleitorais irretocáveis desde 1996.
Distraídos, os homens de toga abriram um
atalho para a operação golpista. A Constituição não atribui às Forças Armadas
nenhuma função relativa às eleições, domínio de competência do Congresso
Nacional, na esfera legislativa, e dos tribunais eleitorais, nas esferas
jurídica e organizativa. Contudo, por iniciativa de Luís Roberto Barroso, o TSE
incluiu o Ministério da Defesa numa comissão dedicada à “transparência” das
eleições de 2022. O passo em falso concedeu à facção militar golpista uma
posição de artilharia propícia a bombardear a credibilidade das urnas
eletrônicas.
Há tempos, o STF engajou-se na armadilha de
operar como ator político. Dias Toffoli inaugurou, em 2020, um “diálogo entre
Poderes” com Bolsonaro, pantomima que prosseguiu sob Luiz Fux. Ao convidar o
Ministério da Defesa para a tal comissão, Barroso imaginou que, por meio de uma
manobra genial, envolveria a facção fardada golpista numa teia de legitimação
do processo eleitoral. O que conseguiu foi envolver o TSE no ensaio do golpismo
bolsonarista.
É inútil esperar que os fardados de
Bolsonaro inclinem-se à Constituição. Resta a esperança de que os togados do
STF desistam de desempenhar funções políticas, interrompendo o “diálogo entre
Poderes”.
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