segunda-feira, 16 de maio de 2022

Demétrio Magnoli: A farda e a toga

O Globo

A Constituição define as funções das Forças Armadas: “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes constitucionais” e, por iniciativa de qualquer dos Poderes, “garantia da lei e da ordem”. Reunidos logo após o encerramento da ditadura militar, os constituintes pretendiam vincular os homens em armas à proteção do sistema democrático. Hoje, sob o comando de Bolsonaro, uma facção fardada flerta com o golpismo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colabora involuntariamente com os ensaios golpistas ao conduzir, à revelia do texto constitucional, um debate sobre a segurança das urnas com o Ministério da Defesa.

A articulação golpista de Bolsonaro ganhou forma operacional em março de 2021, com a ascensão de Walter Braga Netto ao cargo de ministro da Defesa e a simultânea substituição dos três altos comandantes militares. Edson Pujol, o comandante demitido do Exército, confrontara o presidente ao declarar que as Forças Armadas são instituição de Estado, não de governo ou de partidos. Depois da represália, os fardados aceitaram participar da retórica golpista emanada do Planalto.

A bandeira da “intervenção militar constitucional” foi desfraldada em agosto de 2015, antes mesmo do impeachment de Dilma Rousseff, quando um grupelho de apoiadores do então deputado Jair Bolsonaro montou acampamento diante do Comando Militar do Sudeste, em São Paulo. Seis anos mais tarde, no rastro da demissão de Pujol, ganhou uma narrativa ideológica expressa em duas notas oficiais.

A primeira, assinada por Braga Netto e pelos três novos comandantes militares, destinada a repudiar declarações democráticas do senador Omar Aziz, acrescentava às funções das Forças Armadas a missão de defender “a liberdade do povo brasileiro”. A segunda, firmada apenas pelo ministro da Defesa, simulava desmentir suas próprias declarações golpistas apenas para reiterá-las, por meio da mesma senha.

Liberdade é noção aberta à interpretação ideológica. Segundo Lênin liberdade é o regime dos sovietes, e segundo Bolsonaro é seu próprio governo, mas imune ao controle constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF). A “reinterpretação” da Constituição produzida pelos chefes militares indica que uma facção fardada, curvando-se aos impulsos aventureiros do capitão subversivo alçado à Presidência, renunciou ao princípio da separação entre os quartéis e a política.

Depois do ato 1, a troca dos comandos militares, e do ato 2, a formulação da narrativa golpista sobre “a liberdade do povo brasileiro”, desenrola-se o ato 3, a fabricação de um pretexto tático. Trata-se de elevar os ataques retóricos bolsonaristas sobre a segurança das urnas eletrônicas ao estatuto de contestação institucional oriunda das Forças Armadas. Do nada, como nuvem plúmbea em céu claro, uma sombra oficial de suspeição passou a recobrir os mecanismos de votação e apuração que asseguram processos eleitorais irretocáveis desde 1996.

Distraídos, os homens de toga abriram um atalho para a operação golpista. A Constituição não atribui às Forças Armadas nenhuma função relativa às eleições, domínio de competência do Congresso Nacional, na esfera legislativa, e dos tribunais eleitorais, nas esferas jurídica e organizativa. Contudo, por iniciativa de Luís Roberto Barroso, o TSE incluiu o Ministério da Defesa numa comissão dedicada à “transparência” das eleições de 2022. O passo em falso concedeu à facção militar golpista uma posição de artilharia propícia a bombardear a credibilidade das urnas eletrônicas.

Há tempos, o STF engajou-se na armadilha de operar como ator político. Dias Toffoli inaugurou, em 2020, um “diálogo entre Poderes” com Bolsonaro, pantomima que prosseguiu sob Luiz Fux. Ao convidar o Ministério da Defesa para a tal comissão, Barroso imaginou que, por meio de uma manobra genial, envolveria a facção fardada golpista numa teia de legitimação do processo eleitoral. O que conseguiu foi envolver o TSE no ensaio do golpismo bolsonarista.

É inútil esperar que os fardados de Bolsonaro inclinem-se à Constituição. Resta a esperança de que os togados do STF desistam de desempenhar funções políticas, interrompendo o “diálogo entre Poderes”.

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