segunda-feira, 16 de maio de 2022

Luiz Fernando Janot*: Cidades sob ameaças

O Globo

As cidades brasileiras nunca foram tão ameaçadas como atualmente. Mudanças de comportamento contribuíram para que determinados espaços públicos perdessem sua vitalidade. A multiplicação de shoppings e condomínios fechados, de certa forma, reduziu a presença da população nas ruas e nos eixos estruturadores do comércio de bairro. As tecnologias de comunicação digital favoreceram o trabalho à distância.

A expansão desordenada das cidades também criou distâncias difíceis de superar a qualquer hora do dia, especialmente à noite. Seja pela má qualidade do transporte coletivo ou por questões associadas à violência urbana. Não se pode esquecer que a mistura das funções da cidade a torna mais dinâmica e atraente.

Se o planejamento urbano aliar as contingências empresariais aos interesses da coletividade, teremos uma cidade mais harmônica e mais justa. Transformar em oportunidade o imediatismo que predomina em nossa sociedade poderá contribuir para um futuro mais promissor. No quebra-cabeça urbano, há que estabelecer limites entre a informalidade e a permissividade.

Compreender as transformações do mundo e seus significados é um caminho seguro para refletir sobre o futuro das sociedades e de suas respectivas cidades. Há tempos o mundo assiste com espanto e perplexidade a uma quantidade expressiva de imigrantes arriscando a vida para fugir da guerra, da miséria e da marginalização social.

São pessoas que se somarão aos 10% da população mundial que tenta sobreviver com menos de US$ 1,25 por dia. No Brasil, cerca de 20 milhões passam fome, e um contingente significativo vive em condições precárias em locais desprovidos de infraestrutura e saneamento.

Não há como ficar indiferente diante do contraste aparente entre os enclaves de riqueza e os guetos de pobreza em nossas cidades. A ausência do Estado nas comunidades populares — me refiro à falta de serviços públicos — permitiu a ocupação e o controle de certas localidades por traficantes e milicianos. Chegou a hora de acabar com o modelo discricionário de atuação do poder público nas favelas, que privilegia o combate ao pobre em vez de à pobreza.

Intervir nessas comunidades exige estratégia, sensibilidade e participação efetiva do Estado e dos moradores. Não se trata de ver o que ninguém viu, mas de pensar o que ninguém pensou sobre algo que todos veem no dia a dia, ensina o filósofo Schopenhauer. Afinal, as cidades reproduzem os modelos de sociedade existentes em seu território ao longo da História.

Mikhail Gorbachev, em depoimento no filme “Tão longe, tão perto” (1993), do diretor alemão Wim Wenders, assinala a importância da harmonia para o futuro da humanidade: “Estou convencido de que um mundo seguro não pode ser construído com sangue. Só pode ser com harmonia. Nós, seres políticos, filósofos, atores, operários, lavradores, povos de todos os credos, devemos concordar com isso. Se concordarmos apenas nisso, o resto se resolverá”.

Tenho a convicção de que o mundo dos dogmas e das certezas absolutas deu lugar a uma nova concepção de vida, em que prevalecem indagações e incertezas. Não cabem certas posturas ideológicas que tentam reduzir as discussões políticas sobre as cidades apenas a seus aspectos econômicos e financeiros. O momento é propício para reavaliar as bases conceituais do Estado de Bem-Estar Social antes que seja tarde demais.

*Arquiteto e urbanista

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