O Globo
As cidades brasileiras nunca foram tão
ameaçadas como atualmente. Mudanças de comportamento contribuíram para que
determinados espaços públicos perdessem sua vitalidade. A multiplicação de
shoppings e condomínios fechados, de certa forma, reduziu a presença da
população nas ruas e nos eixos estruturadores do comércio de bairro. As
tecnologias de comunicação digital favoreceram o trabalho à distância.
A expansão desordenada das cidades também
criou distâncias difíceis de superar a qualquer hora do dia, especialmente à
noite. Seja pela má qualidade do transporte coletivo ou por questões associadas
à violência urbana. Não se pode esquecer que a mistura das funções da cidade a
torna mais dinâmica e atraente.
Se o planejamento urbano aliar as contingências empresariais aos interesses da coletividade, teremos uma cidade mais harmônica e mais justa. Transformar em oportunidade o imediatismo que predomina em nossa sociedade poderá contribuir para um futuro mais promissor. No quebra-cabeça urbano, há que estabelecer limites entre a informalidade e a permissividade.
Compreender as transformações do mundo e
seus significados é um caminho seguro para refletir sobre o futuro das
sociedades e de suas respectivas cidades. Há tempos o mundo assiste com espanto
e perplexidade a uma quantidade expressiva de imigrantes arriscando a vida para
fugir da guerra, da miséria e da marginalização social.
São pessoas que se somarão aos 10% da
população mundial que tenta sobreviver com menos de US$ 1,25 por dia. No
Brasil, cerca de 20 milhões passam fome, e um contingente significativo vive em
condições precárias em locais desprovidos de infraestrutura e saneamento.
Não há como ficar indiferente diante do
contraste aparente entre os enclaves de riqueza e os guetos de pobreza em
nossas cidades. A ausência do Estado nas comunidades populares — me refiro à
falta de serviços públicos — permitiu a ocupação e o controle de certas
localidades por traficantes e milicianos. Chegou a hora de acabar com o modelo
discricionário de atuação do poder público nas favelas, que privilegia o
combate ao pobre em vez de à pobreza.
Intervir nessas comunidades exige
estratégia, sensibilidade e participação efetiva do Estado e dos moradores. Não
se trata de ver o que ninguém viu, mas de pensar o que ninguém pensou sobre
algo que todos veem no dia a dia, ensina o filósofo Schopenhauer. Afinal, as
cidades reproduzem os modelos de sociedade existentes em seu território ao
longo da História.
Mikhail Gorbachev, em depoimento no filme
“Tão longe, tão perto” (1993), do diretor alemão Wim Wenders, assinala a
importância da harmonia para o futuro da humanidade: “Estou convencido de que
um mundo seguro não pode ser construído com sangue. Só pode ser com harmonia.
Nós, seres políticos, filósofos, atores, operários, lavradores, povos de todos
os credos, devemos concordar com isso. Se concordarmos apenas nisso, o resto se
resolverá”.
Tenho a convicção de que o mundo dos dogmas
e das certezas absolutas deu lugar a uma nova concepção de vida, em que
prevalecem indagações e incertezas. Não cabem certas posturas ideológicas que
tentam reduzir as discussões políticas sobre as cidades apenas a seus aspectos
econômicos e financeiros. O momento é propício para reavaliar as bases conceituais
do Estado de Bem-Estar Social antes que seja tarde demais.
*Arquiteto e urbanista
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