A origem da propriedade privada foi uma
das, se não a mais importante revolução por que passou a humanidade. Vamos
tentar inferir aqui algumas consequências desse ato histórico fundamental. A
mais imediata foi o surgimento do "outro" (o inferno são os outros
segundo Sartre). Antes havia o "nós". Por exemplo: "Nós",
dizia o troglodita, "precisamos de comida". E os homens se reuniam
para caçar um mamute e distribuir a carne do bicho entre eles.
A solidariedade era natural entre os
homens. A propriedade privada acabou com isso. Com o advento da propriedade e o
consequente surgimento do cultivo de alimentos e a criação dos animais, os que
ficaram sem terra naquele tempo passaram a ter que pagar pela carne e pelos grãos
necessários à sua alimentação. Assim temos que a propriedade privada criou um
problema novo para a humanidade, a fome. Antes a fome era um problema
individual que um peixe assado resolvia. A propriedade privada engendrou a fome
de coletividades inteiras. O dono de um terreno plantava e criava animais para
ele e os seus comerem e o possível excedente era destinado ao escambo com
outros proprietários de terras. Os "sem-terra" que não tinham sangue
de barata para morrer de fome roubavam ou furtavam comida dos proprietários.
Assim temos ainda que a propriedade privada deu origem ao roubo e ao ladrão.
Ao dividir a humanidade em duas partes, aquela que tem as coisas e a outra que nada tem, a propriedade privada deu também origem a duas coisas que a humanidade não conhecia: quem tem se acha melhor que quem nada tem. Aqui tiveram origem os sentimentos de superioridade e inferioridade nas pessoas e os corolários: a prepotência de um lado e a inveja do outro.
Acabou com a solidariedade e instituiu a
concorrência e com ela a deslealdade entre as pessoas. E como resultado disso a
concentração da propriedade por um lado e o aumento da miséria por outro. Nos
dias de hoje só se vê os resquícios daquela solidariedade natural que havia
entre as pessoas, durante algumas catástrofes como um terremoto por exemplo,
quando a propriedade privada perde o significado e as pessoas estão mais
preocupadas em salvar a própria pele.
Quando um proprietário de um automóvel
atropela um pobre, e isso é mais comum do que a gente pensa, ele lamenta muito
mais o estrago feito em seu carro que a dor que a vítima (ou a família) possa
estar sentindo. E se sujar o banco do carro de sangue, a raiva do atropelador
será extensiva à mãe do infeliz atropelado. Uma das páginas mais tristes na
crônica da propriedade privada é quando o burguês, depois de ter trabalhado a
vida inteira, formado uma família e construído um patrimônio a duras penas.
Depois de tudo, já velho e doente mas lúcido e com a sensibilidade não
embotada, ele percebe que os familiares estão como que a torcer para que
"o velho" morra logo afim de poderem por as mãos na herança. Assim
temos que a propriedade privada deu origem também a mais esse fato insólito na
história da humanidade: a torcida pela morte do próximo, mesmo um pai ou uma mãe.
E a atração da propriedade privada é tão terrível que os filhos da burguesia
não apenas "torcem" e procuram acelerar o processo passando um
atestado de caduco para o velho, ou encomendando a sua morte como fez aquela
menina a Hichthofen.
*Fernando Carvalho é historiador, formado
pela Universidade Federal Fluminense (UFF), autor de “Livro Negro do Açúcar”.
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