O Globo
Férias. Pensei em escrever artigos sobre
novos temas. Mas como fugir da ameaça de golpe que domina o noticiário? O
problema é que nem sobre isso posso escrever como queria.
A preparação para resistir a um golpe
implica inúmeras iniciativas. Vivi dois, um no Brasil, outro no Chile, sem
contar tentativas fracassadas.
Lembro-me de ter escrito em Santiago um
artigo para a revista Punto Final sobre o golpe no Brasil e algumas lições
sobre seu êxito. Escrever sobre resistência a um golpe num jornal nacional
acabaria dando ao próprio golpe algumas ideias de como melhor se instalar no
país, neutralizando a resistência.
Prefiro, no momento, outro caminho: escrever sobre as vantagens da democracia. Isso me dá a possibilidade de abordar alguns temas sepultados no Brasil de hoje.
Refiro-me a políticas públicas que melhoram
a vida das pessoas. Participei ativamente de uma delas: o combate à aids no
Brasil. Fui o braço parlamentar da decisão de distribuir gratuitamente os
coquetéis antivirais. José Serra, então ministro da Saúde, foi mais longe
questionando, internacionalmente, as patentes que davam exclusividade aos
laboratórios, numa questão de vida ou morte.
Meu objetivo hoje era escrever sobre a
doença de Alzheimer. Na época, consegui um estudo produzido pelo governo
francês. No princípio do século, quase ninguém falava disso no Brasil. Procurei
Serra e perguntei:
— Já ouviu falar de Alzheimer?
Ele disse, sorridente:
— Sim. Tenho muito medo disso.
Serra era visto como hipocondríaco e estava
brincando com sua fama.
Eu ainda não tinha lido todo o estudo, mas
disse apenas que a conclusão central para uma política era reconhecer que as
famílias sozinhas não tinham condições de administrar o problema.
O tempo passou, a doença ficou mais
conhecida, foi tema de um interessante filme, “Meu pai”, protagonizado por
Anthony Hopkins.
Alguns amigos e conhecidos já foram
atingidos por essa doença e, cada vez que ouço um novo caso, fico muito triste.
Dizem, não tenho condições de confirmar cientificamente, que 20% dos
octogenários podem ser atingidos por Alzheimer. Será um grande problema social
e de saúde.
Não conseguimos criar uma política nacional
abrangente para o Alzheimer. As famílias continuam desamparadas. Com as redes
sociais, pelo menos podem trocar informações e atenuar seu fardo. O processo
democrático é importante porque abre a possibilidade para essas políticas.
Hoje, estão muito mais distantes.
O orçamento secreto é um assalto ao
dinheiro público para fins paroquiais. É muito difícil apoiar políticas
públicas que favoreçam a todos.
Esse é um tema importante quando pensamos
na resistência ao golpe. O que restou da democracia, sequestrada pela extrema
direita, religiosos, militares e políticos?
A passividade diante de absurdos como o
orçamento secreto é, na verdade, uma ajuda ao golpe, na medida em que suprime
uma das vantagens centrais da democracia: destinar racionalmente os recursos
orçamentários.
Da mesma forma, a presença de pastores no
Ministério da Educação, subvertendo o conceito de Estado laico, não pode ser
entendida exceto como uma preparação para o golpe. A educação deixa de formar
as crianças para os novos tempos e as entope de bíblias superfaturadas.
A presença das Forças Armadas num processo
eleitoral de que deveriam manter distância segura, os supersalários de generais
que se dizem salvadores da pátria, mas salvam seu próprio bolso — tudo isso
fortalece um golpe porque reduz o potencial da própria democracia.
Um roteiro para enfrentar o golpe, desde o
princípio, é lutar milímetro por milímetro por uma democracia plena. Tivemos
mais demonstrações contra ela do que a favor, figuras autoritárias e grotescas
concentram a atenção da mídia no Parlamento.
Há muito o que fazer, especificamente, para
derrotar um golpe. Mas tudo será mais difícil se a gente não reconhecê-lo no
cotidiano, na simplicidade das notícias que aparentemente não têm relação entre
si.
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