Todo cheiro é uma ponte para o passado. Dos
cinco sentidos, o olfato é o único com ligação direta com a parte do cérebro
onde mora nossa memória afetiva. O cheiro de naftalina me transporta de volta
às férias de verão no sítio da minha avó no interior do Rio. Um lugar mágico,
onde o tempo não passava, e as bolinhas de naftalina, com seu cheiro de
passado, conservavam tudo como deveria ser.
Mas o tempo não para, pelo contrário, só
acelera, fazendo a vida passar numa velocidade difícil de acompanhar. Conceitos
sendo revisados, ideologias, tecnologias morrendo e nascendo, crenças e valores
escrutinados e questionados todos os dias numa revolução sem fim.
A cada tuíte ou post polêmico, cada novo livro de História, cada podcast histriônico, live de presidente, a cada barraco no “BBB”, somos obrigados a encarar nossos dilemas do passado. É preciso entender a história da nossa História, sempre contada pelo andar de cima, justificando preconceitos arraigados: racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, gordofobia, chauvinismo... e tantas outras palavras para descrever nossa capacidade de odiar o que nos parece diferente. Vivemos num tempo em que nenhuma convicção fica na prateleira o tempo suficiente para justificar uma bolinha de naftalina.
Se o presente é confuso e o futuro parece
assustador, o passado oferece abrigo. Um oásis, repleto de nostalgia, um lugar
idealizado, conhecido, confortável e previsível, onde podemos nos anestesiar
das dores de uma sociedade em transformação.
A nostalgia tem seu valor. Voltar no tempo
nas playlists das nossas adolescências com o volume máximo a caminho do
trabalho, rever filmes antigos, reler livros que nos marcaram, encontrar os
amigos para reviver o passado comum é maravilhoso. Mas, se exageramos na dose,
ficamos presos numa espécie de museu particular, cercados de tantas lembranças
do passado que nos esquecemos do futuro. A nostalgia é um excelente ansiolítico
para reduzir a angústia do presente e o medo do que vem por aí, mas em excesso
tem efeitos colaterais perigosos: a intolerância com tudo o que não seja
passado e uma compulsão de andar para trás, uma ânsia de reescrever o passado e
anular o futuro.
Na semana passada a Suprema Corte americana
resolveu voltar no tempo e mudar um precedente que parecia imutável. Em 1973,
os juízes reconheceram o direito absoluto de a mulher, durante os três
primeiros meses de gravidez, decidir ter ou não seu filho sem a intervenção do
Estado, da Igreja ou de quem quer que seja. Ao vazar o rascunho de um documento
indicando a revogação do direito da mulher sobre seu corpo e a volta das leis
criminalizando o aborto, a Suprema Corte volta ao passado para redefinir o
presente e o futuro das mulheres americanas.
Na Flórida, o governador Ron DeSantis
soltou uma lei proibindo professores de crianças com menos de 10 anos de
discutir em classe qualquer tema sobre orientação sexual e gênero. Num país em
que vigora, também por decisão da Suprema Corte de 2015, o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, cujos filhos frequentam essas mesmas escolas, é
anacrônico expurgar a palavra “gay” das salas de aula como se ameaçasse os
filhos dos pudicos conservadores americanos. É a extrema direita usando
crianças como álibi para, lá na frente, reverter outra decisão da Suprema
Corte.
A onda do retrocesso passa por Washington,
pela Flórida, pela França escapando por pouco de Marine Le Pen, pela Rússia de
Putin buscando seu império perdido e pelo Brasil de Bolsonaro. Com a fixação
pelo Golpe de 64 e a tentativa de vender a ditadura como ápice da nossa
História, ele quer voltar ao passado dirigindo um tanque velho.
Sua agenda retrógrada, as ameaças ao STF e ao processo eleitoral criaram o ambiente perfeito para a volta de um candidato que, de novidade, não tem nada. Com as antigas promessas, mesmas narrativas e nada de novo para mostrar, Lula se tornou a única opção viável contra o retrocesso da democracia que Bolsonaro representa. Um país tão novo, mas tão obcecado pelo passado, nos obrigando a escolher entre a nostalgia da direita e a nostalgia da esquerda, entre o cheiro de fumaça de tanque e o cheiro de naftalina.
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