segunda-feira, 16 de maio de 2022

Marcello Serpa: A nostalgia como ansiolítico

O Globo

Todo cheiro é uma ponte para o passado. Dos cinco sentidos, o olfato é o único com ligação direta com a parte do cérebro onde mora nossa memória afetiva. O cheiro de naftalina me transporta de volta às férias de verão no sítio da minha avó no interior do Rio. Um lugar mágico, onde o tempo não passava, e as bolinhas de naftalina, com seu cheiro de passado, conservavam tudo como deveria ser.

Mas o tempo não para, pelo contrário, só acelera, fazendo a vida passar numa velocidade difícil de acompanhar. Conceitos sendo revisados, ideologias, tecnologias morrendo e nascendo, crenças e valores escrutinados e questionados todos os dias numa revolução sem fim.

A cada tuíte ou post polêmico, cada novo livro de História, cada podcast histriônico, live de presidente, a cada barraco no “BBB”, somos obrigados a encarar nossos dilemas do passado. É preciso entender a história da nossa História, sempre contada pelo andar de cima, justificando preconceitos arraigados: racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, gordofobia, chauvinismo... e tantas outras palavras para descrever nossa capacidade de odiar o que nos parece diferente. Vivemos num tempo em que nenhuma convicção fica na prateleira o tempo suficiente para justificar uma bolinha de naftalina.

Se o presente é confuso e o futuro parece assustador, o passado oferece abrigo. Um oásis, repleto de nostalgia, um lugar idealizado, conhecido, confortável e previsível, onde podemos nos anestesiar das dores de uma sociedade em transformação.

A nostalgia tem seu valor. Voltar no tempo nas playlists das nossas adolescências com o volume máximo a caminho do trabalho, rever filmes antigos, reler livros que nos marcaram, encontrar os amigos para reviver o passado comum é maravilhoso. Mas, se exageramos na dose, ficamos presos numa espécie de museu particular, cercados de tantas lembranças do passado que nos esquecemos do futuro. A nostalgia é um excelente ansiolítico para reduzir a angústia do presente e o medo do que vem por aí, mas em excesso tem efeitos colaterais perigosos: a intolerância com tudo o que não seja passado e uma compulsão de andar para trás, uma ânsia de reescrever o passado e anular o futuro.

Na semana passada a Suprema Corte americana resolveu voltar no tempo e mudar um precedente que parecia imutável. Em 1973, os juízes reconheceram o direito absoluto de a mulher, durante os três primeiros meses de gravidez, decidir ter ou não seu filho sem a intervenção do Estado, da Igreja ou de quem quer que seja. Ao vazar o rascunho de um documento indicando a revogação do direito da mulher sobre seu corpo e a volta das leis criminalizando o aborto, a Suprema Corte volta ao passado para redefinir o presente e o futuro das mulheres americanas.

Na Flórida, o governador Ron DeSantis soltou uma lei proibindo professores de crianças com menos de 10 anos de discutir em classe qualquer tema sobre orientação sexual e gênero. Num país em que vigora, também por decisão da Suprema Corte de 2015, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, cujos filhos frequentam essas mesmas escolas, é anacrônico expurgar a palavra “gay” das salas de aula como se ameaçasse os filhos dos pudicos conservadores americanos. É a extrema direita usando crianças como álibi para, lá na frente, reverter outra decisão da Suprema Corte.

A onda do retrocesso passa por Washington, pela Flórida, pela França escapando por pouco de Marine Le Pen, pela Rússia de Putin buscando seu império perdido e pelo Brasil de Bolsonaro. Com a fixação pelo Golpe de 64 e a tentativa de vender a ditadura como ápice da nossa História, ele quer voltar ao passado dirigindo um tanque velho.

Sua agenda retrógrada, as ameaças ao STF e ao processo eleitoral criaram o ambiente perfeito para a volta de um candidato que, de novidade, não tem nada. Com as antigas promessas, mesmas narrativas e nada de novo para mostrar, Lula se tornou a única opção viável contra o retrocesso da democracia que Bolsonaro representa. Um país tão novo, mas tão obcecado pelo passado, nos obrigando a escolher entre a nostalgia da direita e a nostalgia da esquerda, entre o cheiro de fumaça de tanque e o cheiro de naftalina.

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