O Globo
O governo Jair Bolsonaro e a pandemia da
Covid-19 foram particularmente dramáticos para as mulheres brasileiras — em
particular, negras e mães sem cônjuges. A constatação está em diferentes
diagnósticos socioeconômicos dos dois últimos anos e ajuda a explicar tanto a
baixa intenção de votos quanto a alta impopularidade do candidato à reeleição
no eleitorado feminino. O presidente elegeu-se em 2018, a despeito do #EleNão,
alerta do movimento de mulheres materializado em robustas manifestações de rua.
Era conhecimento de causa, não reivindicação identitária. Trabalhadoras, mães,
donas de casa, beneficiárias de políticas sociais, as brasileiras sabíamos que
o porvir não nos favoreceria. Taí o resultado.
No fim de 2021, 33,1 milhões de brasileiros
não tinham o que comer, salto de 73% sobre um ano antes, o primeiro da
pandemia. A proporção de lares em situação de fome saltou de 9% para 15,5% de
um ano para o outro. Praticamente seis em dez habitantes (58,7%) sobreviviam
com algum nível de insegurança alimentar: substituição de itens mais caros por
mais baratos; supressão de refeições; cessão de comida por adultos para
crianças ou idosos; falta de alimentos, o drama máximo.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar entrevistou moradores de 12.745 domicílios de fins do ano passado a abril de 2022. Atestou que a fome é rural, negra, feminina. Dois em cada três lares chefiados por mulheres enfrentam insegurança alimentar; neles, a fome passou de 11,2% para 19,3% de um ano para outro. Nas famílias com crianças menores de 10 anos, o percentual igualmente dobrou: de 9,4% para 18,1%.
As mulheres são as principais beneficiárias
dos programas sociais de transferência de renda. Experimentaram o vaivém que o
governo impôs ao Auxílio Emergencial até a extinção do Bolsa Família para
implantar o Auxílio Brasil, de cunho eleitoral, mal desenhado e com foco
difuso. A FGV Social chamou de montanha-russa a volatilidade do percentual de
pobres no país no biênio 2020-2021. A pobreza saiu de 9,4% em fins de 2019 e
alcançou recorde histórico de 13,3% no mês seguinte à decretação da pandemia da
Covid-19 pela OMS, em fevereiro de 2020. Em agosto daquele ano — em decorrência
do pagamento das primeiras parcelas do Auxílio Emergencial de R$ 600, com
benefício dobrado para mães chefes de família — , chegou ao menor nível já
registrado na série do economista Marcelo Neri, 3,9%. Voltou ao pior patamar no
início do ano passado, com o fim do benefício. Hoje, com o auxílio mínimo de R$
400 a 18 milhões de beneficiários, alcança 10,8%. São 23 milhões de brasileiras
e brasileiros com renda inferior a R$ 210 per
capita, faixa de habilitação ao benefício social.
Os lares brasileiros penam com a crise do
mercado de trabalho combinada à escalada da inflação e à queda nos rendimentos.
Mulheres são maioria entre desempregados e informais. Ganham menos, porque
afazeres domésticos e cuidados com filhos e parentes idosos limitam a jornada
de trabalho remunerado fora de casa. Durante a pandemia, perderam trabalho e,
consequentemente, dinheiro, em razão do fechamento de creches e escolas. Na
base de dados do Cadastro Central de Empresas 2020, o IBGE apurou aumento no
número de empresas ativas (+3,7% sobre 2019) e de sócios (+4,3%), mas queda no
total de assalariados (-1,8%). Enquanto o número de homens assalariados caiu
0,9% no primeiro ano de pandemia, o de mulheres recuou 2,9%. Do total de
825.280 postos de trabalho perdidos, 593 mil (71,9%) eram ocupados por
profissionais do sexo feminino.
As razões estruturais e conjunturais não escondem que o governo de Jair Bolsonaro desprezou deliberadamente a agenda de gênero. Teve, no máximo, três ministras — Damares Alves, na Mulher, Família e Direitos Humanos, Tereza Cristina, na Agricultura, e Flávia Arruda, na Secretaria de Governo, todas já exoneradas — em duas dezenas de pastas. Mundo afora, presidentes debatem e prometem ou implementam paridade em cargos oficiais, vide Canadá, Chile e França. O brasileiro professa misoginia na forma de piadas, permite que a moral religiosa contamine políticas públicas. Bolsonaro aparelhou o Ministério da Educação durante a mais grave crise do setor; turvou a esperança de futuro de famílias pelo descaso na formação de crianças e jovens. Os ministérios da Saúde e da Mulher patrocinam retrocesso em direitos sexuais e reprodutivos. Não é por acaso que o atual mandatário tem modestos 21% de intenção de voto entre as mulheres, maioria do eleitorado. Seis em dez não votam em Bolsonaro de jeito nenhum. Elas sabem o que ele fez nos anos passados.
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