Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A morte de um revelou o fim de utopia
civilizatória; o crime cometido pelo outro escancarou a dor e a vergonha da
identidade nacional
Amarildo de Souza, 43 anos, casado, seis
filhos, vivia na Rocinha, zona sul do Rio, trabalhava como ajudante de pedreiro
e pescava aos domingos com vara de bambu. Na comunidade, era conhecido como
“Boi”, por carregar, nos braços, de sacos de cimento a idosos inválidos. Ganhou
o apelido aos 11 anos quando salvou um sobrinho de 4 num incêndio.
Amarildo da Costa Oliveira, 41 anos,
casado, mora em São Gabriel, comunidade de Atalaia do Norte, município vizinho
à reserva indígena Vale do Javari. Lá é conhecido como “Pelado”, por ter
nascido com poucos pelos no corpo. Pescador, tem uma lancha de 60 HP (sigla em
inglês para cavalo de potência).
No domingo 14 de julho de 2013, Amarildo
saiu para pescar em São Conrado para garantir a refeição da família. Depois do
almoço, “Boi” saiu de casa e passou em frente a um bar, quando foi interpelado
e levado por policiais que, depois de um arrastão perto dali, tinham iniciado
uma operação na comunidade. Estava com todos os seus documentos.
No domingo 5 de junho deste ano, “Pelado” saiu de manhã cedo com sua lancha. Foi visto passando pela comunidade de São Rafael, a dez minutos de sua casa, logo depois que a lancha do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips deixou o local. Ficou o dia inteiro fora, apesar de, como disse sua esposa aos jornalistas que a procuraram, não pescar aos domingos.
Amarildo “Boi” foi levado para a Unidade de
Polícia Pacificadora da Rocinha, uma das oito UPPs que, naquele ano, pretendiam
mostrar que seria possível desarticular as quadrilhas de tráfico de drogas da
capital com uma atuação “comunitária” nos morros. Lá, os PMs sob as ordens do
major Edson Raimundo dos Santos, comandante da UPP, torturaram e mataram “Boi”
dentro de um contêiner. O corpo, embalado na capa de uma moto, nunca foi
encontrado.
Em 2016, três anos depois da campanha “Cadê
Amarildo”, que comoveu o país, 12 pessoas, entre os quais dez policiais
militares, excluídos dos quadros da corporação, foram condenados pela morte de
Amarildo com penas que variaram de 9 a 13 anos. No final de 2019, o major que
comandava a UPP e recebeu a maior pena foi posto em liberdade condicional e, em
2021, foi reincorporado à Polícia Militar.
Amarildo “Pelado” foi preso dois dias
depois do desaparecimento do indigenista e do jornalista cuja lancha perseguiu.
Em 15 de junho, dez dias depois do início da campanha “Cadê Dom e Bruno”, o
pescador confessou o crime. O que sobrou dos corpos esquartejados e queimados
foi ocultado a três quilômetros do local em que ambos foram mortos com armas de
caça. Restam por ser esclarecidas as motivações e a identificação de todos os
participantes do crime.
Um mês antes de Amarildo de Souza ser morto
na Rocinha, o Rio havia aderido à onda de protestos que se iniciara em São
Paulo com a manifestação liderada pelo Movimento Passe Livre, contra o reajuste
de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus. Os protestos tomariam o país e a energia
produzida pela ocupação das ruas desnortearia a política tradicional e
plantaria as sementes da disrupção que marca a era Bolsonaro.
A falência das UPPs, exposta pela morte de
Amarildo “Boi”, era só o começo do fim da utopia civilizatória. Nove anos
depois, com o assassinato de Bruno e Dom às margens de uma das maiores reservas
de índios isolados do planeta, Amarildo da Costa Oliveira seria o algoz de seu
próprio destino. Escancararia para o mundo a dor e a vergonha da identidade
nacional.
Os dois Amarildos carregam mais do que um
nome em comum. Foram separados por um Brasil que “Limites da democracia”
(Todavia, 2022), o mais novo livro de Marcos Nobre, se propõe a esquadrinhar.
Desdobramento de outro livro, este produzido no calor das manifestações de
junho de 2013, “Imobilismo em movimento” (Companhia das Letras, 2013), a obra
do professor de filosofia e presidente do Cebrap marca o início da onda de
publicações e documentários que se debruçam sobre o que foi feito do país dez
anos depois da catarse.
“Não são quaisquer dez anos. São dez anos
de brutal crise econômica e social, de instabilidade política permanente, de
desastres ambientais sem precedentes, de ameaça direta à democracia e à vida. É
enorme a quantidade de temas e de problemas que emergem em um tempo como esse,
de acúmulo e superposição de crises tão severas, profundas e duradouras”, diz
Nobre.
De tão junto e misturado, o ato inaugural
do período ficou no imaginário de Priscila Musa, uma das manifestantes, como o
da volta da tomada de três pinos num Brasil de pleno emprego, mas grávido de
demandas. Integrante do “Fora Lacerda”, movimento reunido contra o então
prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, Priscila é uma das 50 entrevistadas
da série “Junho 2013, o Começo do Avesso”, de Angela Alonso e Paulo Markun,
cujo primeiro dos seis episódios estreou em 13 de junho no Canal Brasil.
“O que mesmo ia bem?”, provoca Nobre ao
introduzir a temática do livro a partir de um passado que parece idílico se
comparado com o pesadelo da era bolsonarista. Naquele junho de 2013 se desfez o
pacto que o autor recupera da conversa de Fernando Henrique Cardoso com
Cristovam Buarque em que o ex-presidente diz ao ex-governador que nessa disputa
entre PT e PSDB sobre quem comanda o atraso, o risco é o atraso tomar o
comando. É este o poder hoje.
Quando os depoimentos colhidos no
documentário entre estudantes do Movimento Passe Livre começam a se misturar
com ativistas de direita como Marcelo Reis (Revoltados Online), que se regozija
com o “despertar” do povo que descobriu “Lula, o câncer do Brasil”, parece inevitável
a conclusão de que junho de 2013 chocou o ovo da serpente bolsonarista.
Nobre contesta a tese. Não foram as
manifestações iniciadas naquele momento que, apropriadas pela direita,
resultaram no governo do ex-capitão. E sim a blindagem do sistema político
contra a energia das ruas que desperdiçou a chance - inédita - de reformar a
democracia.
“A eleição de Bolsonaro foi, portanto, a
obra conjunta de um sistema político que se recusou a se autorreformar, de uma
energia social que não encontrou caminhos para influir na institucionalidade
senão por meio de uma força judicial e de mobilizações de base no campo da
direita incapazes de formular um projeto de institucionalização política claro
e viável independentemente da extrema direita”, diz Nobre.
Quem se acostumou a ver a deputada Carla
Zambelli (PL-SP) como uma das mais vocais do radicalismo bolsonarista até se
espanta com o tom ameno do depoimento na série de Angela Alonso e Paulo Markun
sobre junho de 2013. Por mais estapafúrdia que fosse sua tese, a de que os
black blocs foram plantados pelo governo de plantão para acabar com as
manifestações de rua, a ponderação com a qual a sustenta em nada lembra a
incendiária parlamentar.
A deputada é uma expoente do que Marcos
Nobre chama de “novas direitas”, grupos que estavam à margem da esfera pública
formal. A partir de junho de 2013, se valeram das ruas, cavalgaram a Lava-Jato
e se organizaram, por meio de recursos digitais, para ampliar sua influência e
levar um embate nascido do lado de fora das instituições para dentro delas. E
isso só foi possível porque esta nova força encontrou um sistema atordoado que,
de tanto recusar os impulsos da sociedade, acabou engolido pelo encontro da
política tradicional com os métodos da nova direita.
A medida do quanto se enfronharam foi dada
pelo ex-delegado da Polícia Federal no Amazonas Alexandre Saraiva. Hoje
candidato a deputado federal pelo Rede do Rio de Janeiro, o ex-PF acusou Carla
Zambelli de ter se aliado ao Centrão para defender as empresas que
contrabandeiam madeira no Norte do país e que, junto com garimpeiros ilegais e
narcotraficantes, instalaram o Estado do crime nas fronteiras do país.
Marcos Nobre argumenta em defesa de uma
frente ampla contra o autoritarismo que esteja preparada para não mais reeditar
o discurso de que todos ganham. E que também seja capaz de arbitrar perdas numa
reforma tributária redistributiva e pró-crescimento, com universalização de
água e esgoto, garantia de moradia, emprego formal e uma segurança pública
efetivamente divorciada no crime organizado.
A morte do indigenista Bruno Araújo Pereira
e do jornalista Dom Phillips, concomitantemente à crise dos combustíveis,
realça a dramaticidade da extensão dessa frente ampla para a questão climática.
O crime na reserva indígena Vale do Javari joga luz sobre dois temas divisivos
entre potenciais aliados de uma frente ampla, como o marco temporal das terras
indígenas e a mineração nas reservas demarcadas.
É igualmente dramático ver as cartas
embaralhadas no discurso sobre a Petrobras na crise dos combustíveis. De uma
hora para a outra, a transição para uma economia de baixo carbono é posta de
lado em nome da retomada da empresa para produzir, a qualquer custo,
combustível barato para os brasileiros.
Os discursos de Lula e Bolsonaro se
confundem e ignoram a governança da empresa. Integrada ao mercado mundial, a
Petrobras poderia ter seus lucros revertidos tanto para subsídios destinados ao
uso de combustíveis por segmentos mais vulneráveis da sociedade quanto para o
investimento em fontes alternativas de energia.
O drama social da questão climática põe em xeque o postulado inicial levantado pelo livro de Marcos Nobre. Se, de fato, chegou ao fim o pacto para a liderança do atraso ou se há uma renovação dessa aliança em outros termos. A sirene sobre os riscos de renovação desse pacto vem do Norte do país. Depois da dramática falta de oxigênio na pandemia, a Amazônia volta a ser asfixiada pela ausência de futuro no debate nacional, vírus que contagiou o país inteiro.
Um comentário:
Lembro bem do outro Amarildo,um vítima,o outro algoz.
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