Editoriais
Tudo por pontos
Folha de S. Paulo
Estável no Datafolha, Bolsonaro tende a
buscar medidas temerárias por 2º turno
A agitação política, o conflito entre
Poderes e a escalada dos preços dos combustíveis e de outros produtos parecem
por ora não afetar as intenções de voto para presidente.
A nova
pesquisa Datafolha mostra um cenário quase inalterado em
relação ao de março. De mais significativo, nota-se que Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) continua a ter apoio bastante para, em teoria, vencer a eleição no
primeiro turno —53% dos votos
válidos.
Tal perspectiva tende a incentivar ainda
mais o governo de Jair Bolsonaro (PL) a buscar medidas que possam render pontos
suficientes para evitar a derrota precoce.
É um estímulo a providências imediatas e
imediatistas, tanto na esfera de favores com dinheiro público quanto no combate
por meio de mídias digitais ou na procura de bodes expiatórios para desviar a
atenção da falta de governo.
Lula continua à frente, com votação quase inalterada em 47%, ante os 28% de Bolsonaro. O petista venceria hoje o presidente por 57% a 34% dos votos em um eventual segundo turno. O mandatário seria também derrotado por Ciro Gomes (PDT), por 51% a 37%. Observe-se que, no primeiro turno, Ciro tem apenas 8% das preferências.
Tampouco houve mudança na rejeição aos
pré-candidatos ou sinal de reação de quem se apresenta como alternativa, como o
pedetista ou Simone Tebet
(MDB). Depois da melhora entre o final do ano passado e março, a
avaliação do governo também tem permanecido estável. O governo é ruim ou
péssimo para 47% do eleitorado; ótimo ou bom para 26%.
Quaisquer que sejam os determinantes do
voto, tais fatores não alteraram a percepção dos eleitores ou não apresentaram
mudança relevante. Más notícias, como combustíveis mais caros, suspeitas de
corrupção no governo ou tragédias como os assassinatos de Dom Phillips e Bruno
Pereira, por exemplo, não alteraram convicções.
Além do mais, 70% dos entrevistados dizem
que não mudarão mais seu voto. De todo modo, a história do pleito se torna
menos previsível em um cenário de segundo turno, dado potencial de tumulto com
as ameaças golpistas de Bolsonaro.
O governo e seus aliados devem ficar ainda
mais decididos a ampliar benefícios sociais e a tomar medidas de curto prazo a
fim de ganhar algum terreno nas pesquisas, não importam os danos colaterais.
A situação socioeconômica pouco deve se
alterar até outubro. A campanha plena será curta. Deve chamar mais atenção do
público em geral apenas em fins de agosto, quando começa em TV e rádio.
Pode ser tarde. A lógica indica que, nas
próximas semanas, Bolsonaro terá de usar toda a força da máquina pública e da
propaganda para manter-se vivo na disputa.
Opção no ensino
Folha de S. Paulo
Com cautela, organizações sociais podem
melhorar educação pública paulistana
Inexiste solução simples e rápida para o
ensino básico público no Brasil, mas registraram-se nos últimos anos
iniciativas meritórias em lugares tão diversos como Ceará, Espírito Santo,
Goiás e Pernambuco, que apresentam boa evolução nas avaliações do MEC. E há
espaço para experimentar mais.
Nesse contexto, é bem-vinda a proposta
paulistana de autorizar o
terceiro setor a gerir parte das escolas municipais. Um projeto
de lei com esse teor tramita na Câmara Municipal e pode ser aprovado nas
próximas semanas.
Pela proposta, as organizações sociais
(OSs) contratadas teriam liberdade para definir projeto pedagógico e
metodologias de ensino nas unidades sob sua gestão. Ganhariam autonomia também
para montar a equipe de profissionais, podendo contratar pessoas de fora da
rede, sem concurso público.
A utilização de OSs não é exatamente uma
novidade nos domínios paulistanos. Ela é realidade há vários anos na saúde; na
educação, já vem sendo usada nas creches.
São, portanto, conhecidos os riscos e as
vantagens do modelo de entidades privadas sem fins lucrativos.
Os contratos precisam ser fiscalizados de
perto, pois há registro de abusos, incluindo casos de corrupção. É também
preciso ficar atento à qualidade dos profissionais contratados.
De melhor, as OSs conseguem operar com mais
agilidade e menos limitações do que o poder público.
Não se trata, obviamente, de substituir a
estrutura de escolas administradas diretamente pelo município, com professores
concursados, pelo terceiro setor. É meritório, isso sim, introduzir um pouco de
diversidade no ecossistema. A rede oficial, como está estruturada hoje, acumula
problemas.
Exemplo gritante é o absenteísmo de
professores. Entre faltas abonadas e licenças médicas, cerca de 10% dos
docentes deixam de comparecer a cada dia. Não se conhecem taxas nem remotamente
parecidas na iniciativa privada.
Ou trabalhar para o município faz muito mal
à saúde, ou criou-se uma cultura de receber sem trabalhar que é lesiva aos
cofres públicos e injusta com os alunos. Introduzir modelos alternativos
ajudaria no mínimo a expor o problema.
Não se deve, contudo, passar um cheque em
branco à prefeitura. É preciso que a proposta seja discutida a fundo pelos
vereadores paulistanos e que cautelas extras sejam adicionadas ao projeto e às
regulamentações posteriores.
Bolsonaro quer controlar as eleições
O Estado de S. Paulo
Ministérios da Defesa e da Justiça reivindicam autoridade para fiscalizar eleições, atribuição exclusiva da Justiça Eleitoral; ingerência desse tipo é motivo para impeachment
É absolutamente inaceitável a campanha de
Jair Bolsonaro contra as eleições. Ele não apenas difunde inverdades contra o
processo eleitoral, como vai colocando as instituições, uma a uma, a serviço do
seu intento de difamação das urnas eletrônicas e da Justiça Eleitoral. Antes,
envolveu o Ministério da Defesa. Agora, incluiu o Ministério da Justiça e a
Polícia Federal.
Segundo a Constituição, as eleições são
assunto da Justiça Eleitoral. Tal é a importância para o regime democrático
dessa exclusividade de competência que o texto constitucional traz uma
disposição drástica: “São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias
de habeas corpus ou mandado de segurança”. Ou seja, a Justiça Eleitoral tem a
última palavra, salvo em caso de matéria constitucional, a cargo do Supremo
Tribunal Federal (STF).
No entanto, Jair Bolsonaro quer ter a
última palavra sobre as eleições. Quer ditar não apenas as regras do sistema de
votação – competência do Congresso –, como também o resultado eleitoral –
definido pelo eleitor nas urnas e contabilizado pela Justiça Eleitoral. Em seu
intento antidemocrático, vale-se da disseminação da desconfiança, numa tática
escandalosamente golpista.
As Forças Armadas sempre colaboraram com a
Justiça Eleitoral, tanto na logística e segurança das eleições como em questões
técnicas. Por exemplo, o desenvolvimento da urna eletrônica contou com o
auxílio de militares. No entanto, até o governo de Jair Bolsonaro, era impensável
– uma vez que rigorosamente inconstitucional – que as Forças Armadas fizessem
demandas públicas sobre a Justiça Eleitoral. Ou, como Jair Bolsonaro aventou em
maio, pudessem realizar uma contabilidade paralela dos votos.
Em vez da colaboração cordial com a Justiça
Eleitoral, o governo de Jair Bolsonaro deseja impor uma dinâmica de confronto
entre Ministério da Defesa e TSE. Convidadas, as Forças Armadas não quiseram
participar de um teste público de segurança da urna eletrônica. Na reunião da
Comissão de Transparência do TSE, o representante do Ministério da Defesa nem
sequer abriu a câmera. No entanto, o titular da pasta, general Paulo Sérgio
Nogueira, enviou no dia 20 de junho um inusitado e inconstitucional ofício ao
TSE comunicando que encaminhará técnicos militares para atuarem como
representantes das Forças Armadas na fiscalização das urnas eletrônicas. Não
cabe às Forças Armadas fiscalizar eleições, como também não lhes cabe
fiscalizar o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo. Não é demais lembrar que
o Código Penal e a Lei do Impeachment definem como crime ações de ingerência no
processo eleitoral.
Para piorar, o governo Bolsonaro envolveu o
Ministério da Justiça e a Polícia Federal na sua campanha contra as eleições,
conforme revelou o jornal O Globo. No dia 17, o ministro da Justiça, Anderson
Torres, comunicou ao TSE que participará, por meio da Polícia Federal, de todas
as etapas de fiscalização e auditoria das urnas eletrônicas e de “sistemas e
programas computacionais eleitorais”. Mais uma vez, o bolsonarismo tenta
inaugurar uma relação de conflito onde até agora havia colaboração harmoniosa.
A Polícia Federal sempre auxiliou a Justiça Eleitoral nos testes de segurança
das urnas e dos softwares empregados. No ano passado, uma investigação da Polícia
Federal concluiu que, desde a implantação das urnas eletrônicas, não houve
ocorrência de fraude.
O ofício de Anderson Torres é ilegal e
inconstitucional. Não está entre as atribuições do Ministério da Justiça
confrontar o TSE, tampouco realizar auditoria independente das eleições, como
se estivesse acima da Justiça Eleitoral. Certamente, Jair Bolsonaro tem todo o
interesse em controlar o sistema eleitoral, por meio da pasta da Justiça ou da
Defesa. Mas, como é lógico, em países democráticos, as eleições não ficam a
cargo do Executivo.
Os limites foram ultrapassados por
Bolsonaro há muito tempo. Ministério Público, Legislativo e Judiciário não
podem se omitir na defesa da Constituição e das eleições.
Recessão nos EUA, um risco a mais
O Estado de S. Paulo
Governo brasileiro, hoje dedicado integralmente à reeleição do presidente, deveria estar mais atento ao perigo de retração na maior economia do mundo, grande parceira comercial do País
Já em crise e assolado pelas incertezas de
um ano eleitoral, o Brasil se defronta agora com o perigo de recessão na maior
potência econômica do mundo, segundo maior mercado importador de produtos
brasileiros e principal destino de suas exportações industriais. O Banco
Central (BC) aumentou de 1% para 1,7% o crescimento estimado para o País neste
ano. Embora justifique algum otimismo, essa revisão ainda aponta um dinamismo
bem menor que o de outros emergentes e um desempenho inferior àquele esperado
para a economia global, um avanço em torno de 3%.
O risco de recessão nos Estados Unidos, nos
próximos quatro trimestres, é superior a 50%, segundo estudo apresentado por
Michael Kiley, economista sênior do Federal Reserve (Fed, o banco central
americano). Quando a projeção se estende pelos próximos dois anos, a
probabilidade sobe para dois terços. Se essa retração ocorrer, seus efeitos
poderão ter importante impacto internacional. Esse alerta deveria ser, para o
presidente Jair Bolsonaro e sua equipe, mais um forte motivo para cuidar da
segurança econômica do País e perder menos tempo tentando intervir na
administração da Petrobras.
Retração econômica e maior desemprego
poderão compor, nos Estados Unidos, o capítulo seguinte à maior inflação em 40
anos. Os preços ao consumidor subiram 8,6% nos 12 meses até maio, no mercado
americano. O último resultado pior que esse, 8,9%, foi registrado no período
até dezembro de 1981. Para tentar conter a onda inflacionária, o Fed passou a
elevar os juros básicos e a reverter a política de expansão da moeda. As ações
expansionistas haviam sido usadas para ajudar o País a recuperar-se do tombo
sofrido em 2020, na primeira fase da pandemia de covid-19.
A recuperação foi um sucesso. Em 2021, o
Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos foi 5,7% maior que o do ano
anterior, quando havia diminuído 3,4%. Mas, depois desse forte crescimento, a
economia americana começou a perder impulso e no primeiro trimestre deste ano
encolheu, em termos anualizados, 1,5%. Recentes projeções ainda apontaram
expansão superior a 3% neste ano e a 2% no próximo, mas o aperto crescente da
política monetária tende a baixar as expectativas.
A invasão da Ucrânia pelas tropas de
Vladimir Putin já havia alterado consideravelmente as previsões para as grandes
potências e, naturalmente, para a economia mundial. Divulgado no começo de
junho, o Panorama Econômico da OCDE, a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, trouxe uma importante revisão dos números. O
crescimento esperado da economia global foi reduzido de 4,5%, estimativa de
dezembro, para 3%. A expansão prevista para os Estados Unidos passou de 3,73%
para 2,46%.
No caso do Brasil, o aumento do PIB em 2022
foi recalculado de 1,4% para 0,6%, com recuperação para 1,2% em 2023. A
expectativa em relação à economia brasileira é inferior a previsões do BC e de
outras fontes públicas e privadas, mas dificilmente uma revisão das
estimativas, nos próximos meses, mudará algumas constatações importantes para
qualquer debate: o País está crescendo bem abaixo da média mundial, continua
correndo bem atrás de outros emergentes, carrega desajustes importantes e tem
baixo potencial para se expandir economicamente nos próximos anos.
Não por acaso as projeções de crescimento
no médio e no longo prazos mal chegam a atingir 2% ao ano. O investimento em
recursos produtivos tem sido, há muitos anos, insuficiente para dar ao País um
potencial de expansão semelhante ao de outras economias emergentes ou ainda
classificadas como “em desenvolvimento”. Além disso, a inflação brasileira
continua acima dos níveis observados na maior parte do mundo capitalista e,
como complemento, há muita insegurança quanto à evolução das contas públicas.
Por todas essas deficiências, qualquer risco de contágio por uma nova recessão
em grandes economias é especialmente inquietante, exceto, é claro, para
pessoas, como o presidente brasileiro, mais dedicadas a buscar fórmulas
populistas de sobrevivência política.
Inspirando-se no atraso
O Estado de S. Paulo
Na tentativa de conter o preço dos combustíveis, governistas querem tributar exportações, solução antiquada e ineficaz
Experiências brasileiras de nove
décadas atrás, praticamente esquecidas por sua ineficácia e disfuncionalidade
econômicas, e frequentes fracassos argentinos parecem ter servido de inspiração
para o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), defender
a taxação das exportações brasileiras de petróleo. O objetivo da medida,
segundo Lira e membros do Centrão que o apoiam, é aumentar a oferta interna de
combustíveis e utilizar os recursos arrecadados para subsidiá-los.
É mais uma das seguidas, e agressivas,
encenações de Lira para mostrar seu apoio às críticas do presidente Jair
Bolsonaro à alta da gasolina, do óleo diesel e do gás de cozinha, cuja culpa
atribui à Petrobras, aos governadores e a quem mais puder acusar. Para
Bolsonaro, Lira e demais governistas candidatos à reeleição, o principal
obstáculo a seus objetivos eleitorais é a inflação, fortemente impulsionada
pela alta dos combustíveis e dos alimentos. Daí a agressividade crescente com
que buscam culpados internos por um problema que afeta toda a economia mundial
e cujas causas estão no comércio internacional.
O Imposto de Exportação, tributo
exclusivamente federal, está previsto na Constituição e sua aplicação não se
sujeita ao princípio da anterioridade, ou seja, pode ser cobrado a partir do
momento em que for instituído. É utilizado geralmente para fins regulatórios,
como meio para induzir o comportamento dos agentes, estimulando ou reprimindo o
consumo.
Um de seus usos mais notáveis na história
republicana ocorreu na década de 1930, período da grande depressão mundial,
quando a exportação de café brasileiro foi fortemente tributada, para manter a
maior quantidade possível do produto no mercado interno, pois no externo teria
pouco valor. Em tempos recentes, seu uso de maneira notável tem sido raro, pois
um dos principais objetivos das políticas de comércio exterior tem sido o de
aumentar a competitividade dos produtos brasileiros, que seria afetada por uma
tributação pesada.
Na Argentina, sucessivos governos têm
utilizado a taxação das exportações ou a fixação de cotas máximas para as
vendas externas na tentativa de assegurar a regularidade do abastecimento
doméstico de produtos de grande peso na pauta do comércio exterior do país,
como trigo, carne e soja. As dificuldades que o país não consegue aplacar
mostram seguidamente a ineficácia de medidas desse tipo.
Em 2021, as exportações de petróleo e óleos
combustíveis alcançaram US$ 30 bilhões; para este ano, projetam-se vendas
externas de US$ 50 bilhões, por causa da alta da cotação do óleo no mercado
internacional. Para o deputado Danilo Forte (União-CE), relator da Proposta de
Emenda à Constituição que trata de biocombustíveis e contém medidas para
reduzir os preços dos combustíveis, “está na hora” de cobrar o Imposto de
Exportação. Há também propostas para aumentar a taxação sobre a Petrobras,
considerada “insensível” por Bolsonaro e seus apoiadores e, por isso, tratada
como “inimiga”, ainda que esteja sob o controle da União.
Permitir estado de emergência seria
equívoco bizarro
O Globo
Em mais um sinal de desespero diante das
pesquisas eleitorais, o presidente Jair Bolsonaro decidiu aumentar o Auxílio
Brasil para R$ 600 e buscar a aprovação do Congresso para decretar um bizarro
estado de emergência, de modo a poder romper os limites impostos pela lei
eleitoral e pelo teto de gastos e criar um “Pix caminhoneiro” de até R$ 1.000.
Sabendo que o estado de emergência nesses
moldes contraria as leis, Bolsonaro e o Centrão querem aprovar uma Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) para livrar o presidente de eventuais punições. O
estado de emergência e o privilégio aos caminhoneiros são ideias descabidas, e
o aumento no Auxílio Brasil exigiria espaço fiscal. É provavelmente o pior
plano já concebido para mudar as regras que evitam o uso da máquina pública em
favor de candidatos.
Os motivos que levaram o Brasil a adotar
uma legislação que proíbe criar novas benesses em ano eleitoral eram válidos
quando ela foi criada e continuam válidos hoje. Para evitar abusos, a lei deve
ser mantida como está. Os planos de Bolsonaro são didáticos, pois mostram o que
aconteceria em caso de aprovação da mudança. Redutos de apoiadores, como os
caminhoneiros, receberiam agrados por motivação política, e a conta seria paga
com o dinheiro de todos os brasileiros.
Uma PEC para permitir o “liberou geral” em
ano eleitoral, como quer o governo, traria danos fiscais, ao anular regras
previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei de Diretrizes
Orçamentárias. O Congresso não pode permitir esse retrocesso institucional. Uma
vez desimpedido esse caminho, Bolsonaro provavelmente aumentaria a lista dos
beneficiados. Futuros governantes também estariam diante de uma porta aberta
para aquilo que, num passado não tão distante, era chamado simplesmente de
compra de votos.
É uma lástima que Bolsonaro ataque as
regras sobre a decretação do estado de emergência, fundamentais para lidar com
crise sanitária provocada pela pandemia. Oficializado em fevereiro de 2020,
poucos dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar emergência
internacional de saúde pública,o estado de emergência permitiu que os governos
federal, estaduais e municipais tomassem medidas necessárias, como impor o uso
de máscaras ou comprar medicamentos e insumos médicos com urgência. A
emergência na área da saúde só foi revogada em abril deste ano, com a queda nas
mortes.
A preocupação de Bolsonaro com o efeito da
alta dos combustíveis no eleitorado virou obsessão já há alguns meses. Ele
insiste em buscar soluções erradas, como as trocas recorrentes na presidência
da Petrobras ou o teto para o ICMS cobrado pelos estados. Na tentativa de
reverter o mal-estar, o presidente tem promovido e proposto retrocessos
inaceitáveis, como a ideia de aprovar alterações na Lei das Estatais, uma
medida do governo de Michel Temer para blindar a Petrobras das históricas
roubalheiras.
Com a prisão do ex-ministro da Educação
Milton Ribeiro, sob acusação de corrupção, Bolsonaro está louco para mudar de
assunto e levar boas notícias ao eleitorado. É em momentos como este que as
instituições precisam de mais força para resistir ao populismo.
Acordo fiscal com União é bem-vindo, mas
não pode ser licença para gastar
O Globo
É motivo de celebração e preocupação a
adesão do Estado do Rio de Janeiro ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF),
homologada depois de mais de um ano de intrincadas negociações envolvendo o
governo fedederal e o ministro Dias Toffoli, do Supremo. Celebração, porque a
rejeição do acordo, como já acontecera, paralisaria o estado, que tem uma
dívida de R$ 148 bilhões com a União. Preocupação, porque o bem-vindo alívio
nas contas públicas não pode servir de licença para gastar, especialmente em
ano eleitoral, quando governos se mostram tentados a torrar o dinheiro do
contribuinte sem pensar no amanhã.
É verdade que, no acordo, com vigência até
2030, o governo fluminense se compromete a cumprir o teto de gastos, uma das
principais pendências que travavam as negociações. Como defendia a União — e a
despeito da resistência do Rio —, ficou acertado que o estado instituirá
mecanismos para limitar o crescimento das despesas à variação do Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação. Em caso de
descumprimento, o Planalto poderá acionar o Supremo para exigir que os termos
sejam respeitados. São as regras do jogo.
Numa outra queda de braço, o estado
conseguiu dobrar o governo federal para que servidores públicos mantenham
privilégios inaceitáveis, como os triênios, reajustes salariais automáticos por
tempo de serviço que não levam em conta o mérito. Valerá o que foi aprovado na
Assembleia Legislativa sob pressão das corporações do funcionalismo: só
perderão o adicional servidores recém-contratados. A bondade, que favorece uma
minoria e aumenta os custos para o grosso da população, abre um precedente
perigoso para o governo perpetuar a gastança que o levou ao fundo do poço.
A rejeição do acordo, até a semana passada
uma possibilidade real, teria sido catastrófica. O Rio teria de pagar de
imediato à União os R$ 42,8 bilhões que deixaram de ser quitados desde 2017.
Para entender o que isso significaria, basta dizer que a arrecadação do estado
no ano passado ficou pouco acima de R$ 53 bilhões. Pelas regras do acordo, o
Rio pagará mensalmente à União R$ 300 milhões.
Com base em pareceres técnicos, o governo
federal vetara em janeiro o ingresso do Rio no RRF. Um dos principais
argumentos foi a decisão estadual de conceder reajustes aos servidores até
2030, despesa sem cabimento para um estado falido e de pires na mão. O Rio só
conseguiu manter a suspensão do pagamento da dívida graças a uma liminar do
ministro Dias Toffoli.
O Executivo fluminense precisa aproveitar o alívio nas contas para recuperar o estado, mergulhado em grave crise financeira desde a década passada. Sem austeridade fiscal, não só correrá o risco de ser excluído do regime — que exige equilíbrio em troca do escalonamento da dívida —, como ampliará o tamanho da catástrofe financeira. A população fluminense sabe bem o que isso representa, pois o colapso ainda está na memória de todos. O Rio tem uma chance ímpar de sair do buraco. Desperdiçá-la seria um crime.
Onda de esquerda encobre a diversidade de
governantes
Valor Econômico
As condições econômicas ruins alimentam a
instabilidade político-partidária
Governos de esquerda já foram tão
mal-sucedidos como os de direita na América Latina e o pêndulo atual se inclina
para os primeiros, o que não significa que a nova onda traga um impulso
reformista renovador importante. México, Argentina, Colômbia, Peru, Chile,
Bolívia e Venezuela estão sob comando de líderes esquerdistas, aos quais pode
se somar o Brasil, se Luiz Inácio Lula da Silva se mantiver muito à frente nas
pesquisas, como agora.
Mas os atuais líderes são bastante
distintos entre si, embora tenham de reagir às mesmas condições econômicas, que
hoje são muito adversas em toda a região. Afligidos por inflação alta, baixo
crescimento - exceto Colômbia - e alto desemprego, a paciência dos eleitores
tem se mostrado no limite. Um exemplo deste estado de espírito se vê no Chile,
onde foi eleito o presidente mais jovem da história do país, Gabriel Boric, 36
anos, com 55,9% dos votos. Pouco mais de um mês após a posse, sua popularidade
despencou para 36%. Em junho, ela subiu para 44%, ainda abaixo dos 47% que o
rejeitam. É o pior resultado para o período em relação aos antecessores Sebastián
Piñera e Michelle Bachelet.
A ideologia não tem ajudado o presidente
peruano Pedro Castillo, 51 anos, que em menos de um ano de governo foi alvo de
duas tentativas de impeachment (na última, 55 deputados votaram contra e 54 a
favor) e trocou seu gabinete ministerial quatro vezes. O Peru teve antes dele 4
presidentes em 4 anos.
Gustavo Petro, de 62 anos, é o novo membro
dessa constelação. Ex-guerrilheiro do M19 e ex-prefeito de Bogotá, venceu um
candidato exótico direitista, Rodolfo Hernández, por 11,28 milhões a 10,58
milhões de votos. Petro é o primeiro presidente de esquerda no país, após
derrotar os partidos do establishment que se revezavam desde sempre no poder. A
Colômbia é o país que mais crescerá entre as maiores economias da América
Latina no ano, 5,8% segundo as projeções do FMI.
Um ponto em comum a todos, com exceção do
chileno Boric, é a apologia do intervencionismo estatal, que produziu a ruína
venezuelana e a estagnação argentina. O colombiano Petro, por exemplo, divulgou
em plataforma eleitoral que em sua gestão o “Estado atuará como empregador de
última instância, oferecendo emprego aos que queiram e possam trabalhar, mas
não o encontram no setor privado” - uma promessa delirante. As intervenções nos
preços dos peronistas na Argentina são conhecidas, seus efeitos devastadores
também. Já Boric critica o modelo venezuelano e defende a responsabilidade
fiscal. “A esquerda precisa abraçá-la, pois é garantia de que a vida do nosso
povo vai melhorar”, disse.
Os eixos de governo anunciados por Boric -
direitos sociais, melhor democracia, justiça e segurança, meio ambiente e
crescimento inclusivo - figuram nos planos de todos os governos de esquerda da
região. Há virtudes e grandes desafios. Redistribuição de renda e abrangentes
programas sociais se chocam hoje com situações econômicas bastante adversas.
Isso limita as intenções distributivistas, frustra promessas eleitorais e
desilude eleitores, que votarão em candidatos de outros espectros políticos nos
próximos pleitos, como tem ocorrido na Argentina, ou escolherão candidatos fora
dos partidos tradicionais, como no Brasil, com Jair Bolsonaro, e na própria
Colômbia, com Hernández.
As condições econômicas ruins alimentam a
instabilidade político-partidária. Mesmo vitoriosos, Petro, Boric e Castillo,
que criaram movimentos próprios, não têm maioria nos parlamentos, e o argentino
Alberto Fernández a perdeu na eleição de meio de mandato. Boa parte das
promessas eleitorais ficarão pela metade do caminho ou não serão executadas.
A maior promessa de renovação da nova safra
de esquerda, Gabriel Boric, terá de governar a baixa velocidade até 4 de
setembro, quando ocorrerá o plebiscito sobre a nova Constituição, elaborado
pela Assembleia Constituinte, que dividiu o eleitorado ao meio. Boric poderá
ter de acatar e agir sob premissas que não defende.
A renovação se combina com a ortodoxia
ideológica em doses variadas nesses governos. Petro tem plataforma ecológica
abrangente, embora possa inviabilizar sua gestão com sua ideia de não conceder
mais licenças para exploração de petróleo. Boric lançou o plano “Menos Armas,
Mais Segurança”, com proibição do porte de armas e reforma da polícia. Dos
partidos mais “velhos”, porém, como o peronista argentino e o PT brasileiro, a
expectativa é mais do mesmo, ou menos.
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