Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Temos hoje 125,2 milhões de brasileiros em
situação de insuficiência alimentar. O problema não se resolverá com
providências tópicas e emergenciais.
Entre o acúmulo de dramas que se tornaram
visíveis na sociedade brasileira nos últimos dias, está o não pequeno drama da
fome. O país do futuro está sendo devorado pelo presente.
Os dados mais recentes sobre a fome,
divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar,
colhidos em entrevistas realizadas em 12.745 domicílios, dão um retrato
objetivo da situação em todas as regiões do país, na zona urbana e na zona
rural. Constituem indicadores de uma parte do que é a nossa pobreza, pois se
referem apenas à situação alimentar. Haveria que levar em conta o restante do
que é a pobreza entre nós quanto à moradia, ao consumo não alimentar, à saúde,
à educação.
A porcentagem dos que em 2004 viviam em
situação de segurança alimentar era de 64,8%; em 2020/2021 caíra para 41,3%.
Mesmo que se considere, como é necessário, a situação anômala criada pela
pandemia, a intensidade de sua influência nos números foi agravada pela
vulnerabilidade da sociedade brasileira ao impacto de desastres de todos os
tipos, incluídos os decorrentes da incapacidade dos governos para lidar com
situações excepcionais em todos os campos.
Entre o final de 2020 e o início de 2022, o número de pessoas em situação grave de fome saltou de 19,1 milhões para 33,1 milhões, 15,1% da população. Em pouco mais de um ano, 14 milhões de brasileiros passaram a viver em situação de fome, a forma mais acentuada de decadência social da pessoa. Temos hoje 125,2 milhões de brasileiros em situação de insuficiência alimentar.
O socorro tópico e emergencial oferecido
pelo governo, melhor que nada, como se diz, tem pouco efeito no incremento da
segurança alimentar. Tomando como referência a categoria dos que recebem 1/4 de
salário mínimo per capita ou menos, a relação, nos três meses anteriores à
coleta dos dados, entre o recebimento da Bolsa Família ou do Auxílio Brasil,
dos que recebem, 8,1% estão em situação de segurança alimentar e 44,3% em
insegurança alimentar grave. Entre os que não recebem, 9,9% estão na primeira
situação e 56,7% estão na segunda.
O problema não se resolverá com
providências tópicas e emergenciais. Elas se baseiam num pressuposto que vai se
revelando completamente falso. O de que a situação adversa, do desemprego à
fome, é transitória, de que o crescimento econômico sem desenvolvimento
econômico e social se resolverá com a insistência na opção pelo modelo
econômico problemático e pelo neoliberalismo econômico sem resultados sociais
na proporção necessária à solução de todos os problemas que cria. O modelo
econômico aqui adotado vai se revelando o do beco sem saída.
Sem programas de crescimento econômico com
desenvolvimento social que criem lugares permanentes de integração social e de
pertencimento, nenhum programa de combate à fome dará certo. Qualquer
“acidente”, como este da covid, pode comprometer tudo.
O impacto desses programas na fome é
limitado. E quando sua motivação é subornar a consciência política dos pobres e
deles fazer cúmplices eleitorais do modelo iníquo e da política econômica
equivocada o resultado é o que Edgar Morin define como efeito bumerangue da
comunicação imprópria. Estamos vendo isso diariamente.
Esses dados da situação alimentar devem ser
tomados não só como indicação de gravíssimo problema social, mas também como
evidência de um modelo econômico derrotado, de uma economia que cresce e se
desenvolve muito menos do que pode. O Terceiro Mundo, e o Brasil com destaque
nele, vem sendo tangido por influências e políticas econômicas que de fato o
afastam do capitalismo.
O Brasil montou um sistema repressivo e uma
cultura de intolerância política para combater o comunismo, mesmo já não
existindo ele, para supostamente defender o capitalismo. Mas cadê a defesa do
capitalismo? Capitalismo se defende e se justifica com medidas concretas que
lhe corrijam as irracionalidades antes de incrementar-lhe os lucros.
Na prática essa economia só pode se
realizar fazendo-o ser o capitalismo que aqui não é. Governantes e capitalistas
parecem bem distantes da realidade do que é propriamente o tipo de economia que
lhes compete defender, dinamizar e fazer crescer. Não é o que estamos vendo nem
o que indica essa pesquisa sobre a fome.
Os famintos e miseráveis da sociedade
brasileira são o capital social não utilizado que poderia promover um grande
desenvolvimento econômico com desenvolvimento social num país como o nosso.
O Estado brasileiro foi capturado por
gestores que optaram por uma versão tosca e anticapitalista de capitalismo. É o
poder de técnicos e políticos alienados. Em decorrência, as vítimas se arrastam
nas insuficiências de uma situação que bloqueia o país inteiro.
*José de Souza Martins foi
professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
Pois é,milhões de pessoas passando fome e o governo caçando comunista.
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