Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Ele é a expressão da consciência de uma
sociedade que teima em fazer dos simples o muito menos para que ela possa ser o
demasiado de alguns em troca da ilusão do consumismo falsamente abundante
“Bença,
mãe!” O clamor de Tom Zé cortou como fio de navalha o silêncio emocionado e
litúrgico do auditório da Academia Paulista de Letras para retornar sobre a
pele arrepiada dos presentes, em tempo de reencontrar o refrão que saía da boca
solene do poeta: “Bença, mãe/ Deus te faça feliz/Minha menina Jesus/E te leve
pra casa em paz”.
Eleito sucessor de Jô Soares na Cadeira 33
da Academia, Tom Zé tomava posse. Foi seu paraninfo o maestro Júlio Medaglia,
que contou sua história de simplicidade e de grandeza, desde Irará, no interior
da Bahia. Teve refinada educação musical na Universidade Federal daquele
estado, um músico popular de formação erudita. Até chegar ao mundo que São
Paulo julga ser.
Em 1968, sua “São São Paulo” ficou em
primeiro lugar no Festival de Música Popular daquele ano. O mais significativo
retrato musical e poético da cidade, o mais verdadeiro, dentre tantas
composições que a tem cantado há mais de um século.
Nessa obra, Tom Zé expõe as raízes de sua criatividade e originalidade. A poesia não se separa da música. Nem é linear. A duplicidade dialética dos antagonismos e contradições que a caracteriza tem muitas raízes, na diversidade das determinações, o todo perdido da busca na trama de uma realidade despedaçada.
Tom Zé é um filósofo do vivido, no sentido que lhe dá Henri Lefebvre, o maior dialético do século XX, que foi um pensador da tríade de contradições da modernidade, do percebido, do vivido e do concebido, que sintetiza o desafio do desencontro e da busca.
Nas composições do diálogo de Tom Zé com a
cidade, como é vivida por quem nela encontrou os marcos do desencontro, os do
desterro, referências vivenciais da consciência social do ausente, que está sem
nunca ter chegado na contraditória acolhida do estranhamento.
A obra de Tom Zé não é de protesto. É de
crítica social da alienação, do esclarecimento e da busca de superação das
anomalias e dos desencontros do que é a sociedade contemporânea aqui e entre
nós, que se expressa na urbanização patológica de um lugar dos sem lugar, dos
sem teto, dos sem leito, dos sem esperança. O lugar do pouco no meio do muito.
Identificado com o tropicalismo, ele é, na
verdade, um marco da explosão das possibilidades criativas da Tropicália. Ele é
a expressão revolucionária da ruptura que o tropicalismo vocalizou e da
insurgência que anunciou. Ele é a expressão muito mais da consciência de uma
sociedade que teima em fazer dos simples o muito menos para que ela possa ser o
demasiado de alguns em troca da ilusão do consumismo falsamente abundante do
supérfluo dos demais.
No programa Economist Impact Events, de
2012, ele explicou a lógica de sua concepção da totalidade anômala,
fragmentária e dispersa, deste tempo: “Nós vivemos num mundo em que Aristóteles
está demitido...”. E agregou: “Tô te ensinando pra te confundir e estou
confundindo para te esclarecer”. De vários modos, isso é lefebvriano. No
desconstruído, a desconstrução para a redescoberta de um novo sentido para os
nexos do que não tem conexão.
São Paulo é o seu laboratório de observação
do desconexo, para as indagações e a busca de sua arte, de sua poesia e de sua
música. Na sessão da Academia ele cantou “Augusta, Angélica e Consolação”.
Nomes de mulheres da elite e de uma santa, que a transformação de São Paulo em
paraíso da especulação imobiliária usurpou. Tom Zé os reumaniza, dá-lhes vida
de seres amados e desamados da trama viva em que nem tudo é ou não é para
sempre.
No larguinho da capela dos Aflitos, no
centro do quarteirão em que ficava o cemitério dos escravos e dos enforcados,
não cabe sua aflição. E foi morar na Luz “porque estava tudo escuro dentro do
seu coração”.
Na cidade de nomes de rua que perderam o
sentido ele inventa uma nova geografia de afetos para dar à cidade nomes que
têm sentido. Ele é o chegante, o migrante, que recria a cidade no vivido do seu
modo de descobri-la, de apossar-se dela e do deixar-se por ela possuir.
Em “São São Paulo” ele recanoniza a cidade
cuja invocação religiosa perdera a santidade numa história de mais de 400 anos
de injustiças, da captura e escravização dos índios até a precarização do
trabalho de hoje, no precariado em que se transformou o proletariado. São 8
milhões de habitantes que “amando com todo ódio/Se odeiam com todo amor”. Ah
“São São Paulo quanta dor/São São Paulo meu amor”.
Tom Zé é o pensador de um momento de
grandes rupturas e descontinuidades num Brasil sofrido e triste. Na
anticidadania do ausente, do que chega e está e se naturaliza como colecionador
de contradições, de absurdos, de descabimentos. O sonho reduzido à conquista de
coisas, CIC, RG, relógio de pulso, rádio de pilha. O ter para não ser.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
3 comentários:
Se as minhas palavras alcançassem o José Martins seria a de perguntar por que Lefebvre e não Hegel? Por que essa ideia pífia de descontrução e fragmentação e não a ideia hegeliana de que a dialética é o jogo dos opostos que não se anulam. Sem os opostos é impossível progredir e reconhecer a alienação. Muito queria que ele me respondesse...
e
VIVA TOM ZÉ!
Por que não Hegel? Porque se fosse Hegel não seria Tom Zé.
O anônimo sabe das coisas.
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