sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

José de Souza Martins* - Tom Zé na Academia

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Ele é a expressão da consciência de uma sociedade que teima em fazer dos simples o muito menos para que ela possa ser o demasiado de alguns em troca da ilusão do consumismo falsamente abundante

“Bença, mãe!” O clamor de Tom Zé cortou como fio de navalha o silêncio emocionado e litúrgico do auditório da Academia Paulista de Letras para retornar sobre a pele arrepiada dos presentes, em tempo de reencontrar o refrão que saía da boca solene do poeta: “Bença, mãe/ Deus te faça feliz/Minha menina Jesus/E te leve pra casa em paz”.

Eleito sucessor de Jô Soares na Cadeira 33 da Academia, Tom Zé tomava posse. Foi seu paraninfo o maestro Júlio Medaglia, que contou sua história de simplicidade e de grandeza, desde Irará, no interior da Bahia. Teve refinada educação musical na Universidade Federal daquele estado, um músico popular de formação erudita. Até chegar ao mundo que São Paulo julga ser.

Em 1968, sua “São São Paulo” ficou em primeiro lugar no Festival de Música Popular daquele ano. O mais significativo retrato musical e poético da cidade, o mais verdadeiro, dentre tantas composições que a tem cantado há mais de um século.

Nessa obra, Tom Zé expõe as raízes de sua criatividade e originalidade. A poesia não se separa da música. Nem é linear. A duplicidade dialética dos antagonismos e contradições que a caracteriza tem muitas raízes, na diversidade das determinações, o todo perdido da busca na trama de uma realidade despedaçada.

Tom Zé é um filósofo do vivido, no sentido que lhe dá Henri Lefebvre, o maior dialético do século XX, que foi um pensador da tríade de contradições da modernidade, do percebido, do vivido e do concebido, que sintetiza o desafio do desencontro e da busca.

Nas composições do diálogo de Tom Zé com a cidade, como é vivida por quem nela encontrou os marcos do desencontro, os do desterro, referências vivenciais da consciência social do ausente, que está sem nunca ter chegado na contraditória acolhida do estranhamento.

A obra de Tom Zé não é de protesto. É de crítica social da alienação, do esclarecimento e da busca de superação das anomalias e dos desencontros do que é a sociedade contemporânea aqui e entre nós, que se expressa na urbanização patológica de um lugar dos sem lugar, dos sem teto, dos sem leito, dos sem esperança. O lugar do pouco no meio do muito.

Identificado com o tropicalismo, ele é, na verdade, um marco da explosão das possibilidades criativas da Tropicália. Ele é a expressão revolucionária da ruptura que o tropicalismo vocalizou e da insurgência que anunciou. Ele é a expressão muito mais da consciência de uma sociedade que teima em fazer dos simples o muito menos para que ela possa ser o demasiado de alguns em troca da ilusão do consumismo falsamente abundante do supérfluo dos demais.

No programa Economist Impact Events, de 2012, ele explicou a lógica de sua concepção da totalidade anômala, fragmentária e dispersa, deste tempo: “Nós vivemos num mundo em que Aristóteles está demitido...”. E agregou: “Tô te ensinando pra te confundir e estou confundindo para te esclarecer”. De vários modos, isso é lefebvriano. No desconstruído, a desconstrução para a redescoberta de um novo sentido para os nexos do que não tem conexão.

São Paulo é o seu laboratório de observação do desconexo, para as indagações e a busca de sua arte, de sua poesia e de sua música. Na sessão da Academia ele cantou “Augusta, Angélica e Consolação”. Nomes de mulheres da elite e de uma santa, que a transformação de São Paulo em paraíso da especulação imobiliária usurpou. Tom Zé os reumaniza, dá-lhes vida de seres amados e desamados da trama viva em que nem tudo é ou não é para sempre.

No larguinho da capela dos Aflitos, no centro do quarteirão em que ficava o cemitério dos escravos e dos enforcados, não cabe sua aflição. E foi morar na Luz “porque estava tudo escuro dentro do seu coração”.

Na cidade de nomes de rua que perderam o sentido ele inventa uma nova geografia de afetos para dar à cidade nomes que têm sentido. Ele é o chegante, o migrante, que recria a cidade no vivido do seu modo de descobri-la, de apossar-se dela e do deixar-se por ela possuir.

Em “São São Paulo” ele recanoniza a cidade cuja invocação religiosa perdera a santidade numa história de mais de 400 anos de injustiças, da captura e escravização dos índios até a precarização do trabalho de hoje, no precariado em que se transformou o proletariado. São 8 milhões de habitantes que “amando com todo ódio/Se odeiam com todo amor”. Ah “São São Paulo quanta dor/São São Paulo meu amor”.

Tom Zé é o pensador de um momento de grandes rupturas e descontinuidades num Brasil sofrido e triste. Na anticidadania do ausente, do que chega e está e se naturaliza como colecionador de contradições, de absurdos, de descabimentos. O sonho reduzido à conquista de coisas, CIC, RG, relógio de pulso, rádio de pilha. O ter para não ser.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

3 comentários:

Anônimo disse...

Se as minhas palavras alcançassem o José Martins seria a de perguntar por que Lefebvre e não Hegel? Por que essa ideia pífia de descontrução e fragmentação e não a ideia hegeliana de que a dialética é o jogo dos opostos que não se anulam. Sem os opostos é impossível progredir e reconhecer a alienação. Muito queria que ele me respondesse...

e

VIVA TOM ZÉ!

Anônimo disse...

Por que não Hegel? Porque se fosse Hegel não seria Tom Zé.

ADEMAR AMANCIO disse...

O anônimo sabe das coisas.