sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Ruy Castro - Provocação e prova

Folha de S. Paulo

Se Roda Viva não for de Chico Buarque, de quem seria?

Eduardo 03 Bolsonaro usou numa postagem uma canção de Chico Buarque, "Roda Viva", sem pedir autorização ao autor. 03 detesta Chico Buarque por tudo que ele representa na cultura e deve odiar "Roda Viva", um hino contra a ditadura que 03 defende. Donde seu uso de "Roda Viva" foi uma provocação. Fez isto para afrontar Chico Buarque e obrigá-lo a um processo. O processo aconteceu. E, surpreendentemente, uma juíza está dando ganho de causa a 03 por Chico Buarque "não poder provar sua autoria de ‘Roda Viva’".

"Roda Viva" foi título e tema de uma peça de teatro de Chico Buarque que estreou no dia 15 de janeiro de 1968, no Teatro Princesa Isabel, em Copacabana, no Rio. Eu morava então no Solar da Fossa, vizinho do teatro. Minha colega do Correio da Manhã, Germana de Lamare, era amiga de José Celso Martinez Correa, diretor do espetáculo. Todo fim de tarde, naquele verão de 1967/68, ele me apanhava no Solar e íamos ver os ensaios de "Roda Viva".

Lembro-me da noite em que o elenco, com Marieta Severo, aprendeu a canção. Era impossível ficar indiferente à letra e ao seu ritmo de ciranda –uma ciranda adulta, inexorável, sinistra. Ao escutá-la ainda crua, ninguém ali se preocupou em pedir provas a Chico Buarque de que a canção era dele.

Mesmo porque, se não fosse, de quem seria? Todos os outros grandes nomes estavam ocupados naquele incrível 1968: Tom Jobim compondo (com o próprio Chico Buarque) "Sabiá"; Caetano Veloso, "Baby"; Geraldo Vandré, "Caminhando"; Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, "Sei Lá, Mangueira"; Cartola, "Tive, sim"; Antonio Adolfo e Tiberio Gaspar, "Sá Marina"; Gilberto Gil e Capinam, "Soy Loco por Ti, América"; muitos mais. Donde "Roda Viva" só podia ser dele.

Ninguém teve mais canções perseguidas pela ditadura do que Chico Buarque. Ao proibi-las, os censores não lhe exigiam provas de que ele era o autor delas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Pertenço a esta geração que ouviu e ouve ainda essas músicas, fomos uma geração muito privilegiada. Parabéns pelo artigo e resgatar um histórico tão importante.

ADEMAR AMANCIO disse...

Babado forte e inacreditável.