sábado, 14 de janeiro de 2023

Eduardo Affonso - O Palácio do Torto

O Globo

Talvez devêssemos esquecer o Alvorada, sua colunata encantatória, suas sempiternas infiltrações

É surpreendente que nenhuma dessas cartilhas patrulhadoras da linguagem tenha apontado o racismo estrutural escancarado no nome da residência oficial do presidente da República: Palácio da Alvorada.

Mais interessados nas falsas etimologias que nas verdadeiras, os bedéis do léxico deixaram escapar que alvorada vem de albus (alvo, branco). Por conseguinte, prenhe de conexões com branquitude, eurocentrismo, perpetuação do escravagismo etc. etc.

Alvorada é o clarear, o nascer do dia — enquanto seu oposto, o crepúsculo (diminutivo de creper, escuro) indica que a escuridão está para chegar, e o dia prestes a morrer.

Sim, o crepúsculo também é racista.

Mas o nome do palácio carrega um quê de esperança, de utopia. Sugere o raiar de uma nova sociedade, o despertar de um novo homem (ops, uma nova pessoa). Nasceu de uma visão de Juscelino Kubitschek:

— Lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável em seu grande destino.

Ao contrário do STF, do Palácio do Planalto e do Congresso, o Alvorada já estava em petição de miséria quando militantes e militares resolveram desferir mais um golpe no destino deste eterno “país do amanhã” e promover um quebra-quebra na nossa fé já não tão inquebrantável.

JK não podia fazer desfeita ao amigo Oscar, mas certamente se sentia mais feliz no Catetinho, o mais lindo barracão presidencial do mundo. Jânio preferia a Granja do Torto. Temer, o Jaburu. Collor, a Casa da Dinda e seus jardins babilônicos. Castello Branco não aguentou o palácio. Itamar voltou para o seu apartamento. Figueiredo também escolheu o Torto, onde podia sentir cheiro de cavalo. Jango, os outros presidentes militares, Sarney, Dilma, Lula e FH resistiram, estoicamente. Bolsonaro só aturou por causa do cercadinho.

Talvez devêssemos esquecer o Alvorada, sua colunata encantatória, suas sempiternas infiltrações, seu calorão de estufa, e assumir de vez a Granja do Torto. Haveria lugar e nome mais adequados para o lar de quem governa este país? Granja, s.f. Pequena propriedade rural. Torto, adj. Que não é direito; imperfeito; gauche.

O Alvorada poderia ser transformado num Museu das Perdidas Ilusões, tendo no acervo a carta-renúncia de Jango, as nove páginas do AI-5, o Fiat Elba do Collor, os áudios dos improvisos da Dilma, o Di Cavalcanti e o Bruno Giorgi vandalizados pelos asseclas do Bolsonaro, a Montblanc e o relógio de R$ 84 mil do Lula.

O pé no chão do Torto talvez ajudasse o país a ter uma democracia que dispense ser defendida o tempo todo, porque não estaria sob ataque. E governos que não inventem de reinventar a roda ou rebatizar programas sociais a cada quatro anos, nem brinquem de fazer sístole e diástole com o número de ministérios. Um presidente tedioso, que discurse sem perdigotos e não faça a Bolsa despencar ou a pressão arterial subir a cada declaração impensada. Que esteja mais para a escala humana da casa com alpendre e telha de barro (a sussurrar “Lembra-te de que és mortal”) que para o esplendor inóspito do Alvorada.

Não deu muito certo com Jânio e Figueiredo, porém não custa tentar.

Só quem nunca reclamou de morar no palácio foram as emas. E mesmo elas vão gostar mais da granja. Sem contar que Torto pode até ser capacitista, mas racista não é.

 

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