sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Fernando Abrucio* - Os cidadãos são a razão da reforma

Eu & / Valor Econômico

Só demagogos defendem soluções mágicas. Os retornos obtidos com a redução de despesas advindas de uma reforma administrativa virão ao longo de anos

Toda vez que o Congresso Nacional anuncia que fará uma reforma administrativa, muitos compram a ideia de que sairá daí uma solução rápida e salvadora para reduzir os gastos públicos. Embora seja fundamental e possível cortar várias despesas que são ineficientes e injustas, qualquer grande projeto de reformulação da gestão pública tem de se guiar por um objetivo maior: criar as condições para servir melhor aos cidadãos. Mais do que uma proposta restritiva de administração pública, precisamos capacitar o Estado para responder efetivamente à sociedade.

Há 30 anos pesquiso o tema da reforma do Estado e da gestão pública. Aprendi muito com minhas pesquisas e consultorias, e obviamente muito mais com outros estudiosos brasileiros e estrangeiros, sem me esquecer do aprendizado advindo do convívio com gestores públicos e da conversa com os vulneráveis que mais dependem das políticas públicas.

Mas meu grande mestre no tema sempre foi Luiz Carlos Bresser-Pereira, com sua sabedoria de fazer as perguntas mais profundas, sua criatividade em propor soluções práticas e inovadoras, sua integridade em lidar com a coisa pública e, não posso esquecer, sua generosidade no debate intelectual. E, dos ensinamentos dele, nunca esquecerei o mais importante: a reforma do Estado tem como pressuposto último melhorar a vida dos cidadãos - o resto deve vir para realizar esse intento.

Os congressistas devem seguir a lição de Bresser, um bem-sucedido reformador. Ele conseguiu organizar uma máquina pública que não tinha sequer seus dados de pessoal organizados. Tomou medidas contra privilégios corporativos e, ao mesmo tempo, iniciou um processo de reconstrução de carreiras de Estado. Propôs novas modalidades de organização da administração pública, e embora não tenha conseguido que seu modelo fosse integralmente incorporado, plantou sementes que foram aproveitadas por governos subnacionais de partidos diferentes. Repensou a questão da profissionalização da administração pública, fortalecendo a formação de quadros pela via da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), e discutiu a necessária avaliação contínua dos funcionários públicos, para que a estabilidade, essencial nos regimes democráticos, fosse garantida por meio do mérito.

Evidentemente que houve alguma mudança de cenário de lá para cá. Entretanto, os pressupostos principais do modelo bresseriano podem guiar a reforma da gestão pública brasileira no século XXI. O primeiro deles é que as reformas são incrementais, nunca definitivas e nem feitas de uma vez só, num lance mágico e salvador. Bresser nunca desprezou as reformas realizadas no passado porque dizia que elas responderam aos seus contextos e, ademais, traziam lições para o presente. Quando propôs seu modelo reformista, imaginava que sua implementação ocorreria ao longo dos anos, com aprendizados no decorrer do caminho. Eu diria algo mais: as transformações na organização da administração pública e na reestruturação da carreira feitas por ele foram fundamentais para a expansão qualificada das políticas sociais durante o período Lula. Que herança bendita!

O modelo incremental é uma lição para aqueles que, erroneamente, acreditam numa reforma que vai resolver rapidamente os problemas da gestão pública brasileira. Os congressistas, se retomarem com responsabilidade esse assunto, deveriam pensar num caminho de mudanças mais amplo do que o dia seguinte da lei. É preciso ter espaço para uma legislação que aprenda com a implementação e possa ser aperfeiçoada continuamente.

Outra lição da reforma Bresser foi o diálogo entre políticos e especialistas, feito durante os quatro anos de sua atuação. Neste ponto, deve-se evitar uma visão que demonize a classe política ou os burocratas. Enquanto os congressistas trazem a legitimidade social do voto, os servidores públicos carregam consigo grande conhecimento e experiência das políticas públicas. É preciso buscar consensos e compromissos entre esses dois grupos, em vez de se instalar um jogo de soma-zero. Também é essencial que o Congresso Nacional, ao voltar à discussão da reforma administrativa, ouça especialistas brasileiros e estrangeiros externos ao governo. Eles podem apresentar evidências e diagnósticos contra a lógica do “reformismo terraplanista” que vigorou na Presidência de Bolsonaro, com resultados desastrosos.

As lições de Bresser envolvem ainda abandonar uma visão minimalista de Estado. O maior problema do país é a desigualdade, de modo que uma pura redução do aparato governamental seria desastrosa. Claro que a reforma pode e deve racionalizar os gastos públicos do ponto de vista fiscal. Há espaço para cortes de dois tipos de despesas. Uma relativa a privilégios de determinadas corporações, que já não respeitam nenhum teto remuneratório e estão cheias de penduricalhos. Além disso, é possível ganhar eficiência com boas políticas de governo eletrônico, com a redução de áreas-meio que são obsoletas, organizando melhor o dimensionamento das carreiras e de sua gradação salarial ao longo do tempo, bem como por meio da melhoria da coordenação governamental e da utilização de novas formas organizacionais.

Mesmo que seja possível e necessário buscar esses ganhos fiscais, seu resultado de curto prazo não será do tamanho imaginado por aqueles que esperam, do dia para a noite, uma economia que fecharia a conta do novo marco fiscal. Isso é um tipo de solução mágica que só cabe a demagogos defender. Os retornos obtidos com a redução de despesas advindas de uma reforma administrativa virão ao longo de anos. Quem prometeu que faria esse ajuste de forma rápida e indolor foram Collor e Paulo Guedes. Ambos fracassaram rotundamente e, pior, não criaram condições para a melhoria dos serviços públicos para os cidadãos. Segui-los é perder legitimidade e eleições - Bolsonaro que o diga.

A temática da avaliação de desempenho da burocracia e das políticas públicas é, sem dúvida alguma, essencial no desenho de qualquer reformulação da administração pública. Bresser bebia na experiência internacional da época e propunha uma gestão pública orientada por resultados, ideia que alimentou posteriormente várias iniciativas bem-sucedidas no governo federal e nos entes subnacionais. Tudo que puder ser feito para guiar, medir e aprender com o desempenho governamental, individual e coletivo, será bem-vindo. Cabe, no entanto, saber que tais medidas também exigem um tempo de maturação, e o mais importante não é punir ou restringir a ação dos gestores brasileiros. O mais relevante é criar capacidades institucionais para produzir melhores políticas públicas.

Orientar a gestão pública por um modelo baseado numa governança construtora de capacidades para o desenvolvimento e para produção de políticas voltadas aos cidadãos é o caminho proposto atualmente pela literatura mais avançada sobre o assunto, tanto no plano nacional como no internacional. Esse tipo de conhecimento é a bússola fundamental para tomar melhores decisões sobre a reforma do Estado, como Bresser me ensinou. Se hoje ele fosse ministro, estaria se utilizando das pesquisas de ponta, bem como estaria visitando as experiências reformistas mais inovadoras, tal como fez entre 1995 e 1998.

Nesta linha, há uma extensa lista de bons trabalhos que poderiam se tornar referências para a nova discussão na Câmara Federal e na opinião pública. Para começar, uma sugestão é ler o livro “Políticos versus burocratas: Reformas administrativas em perspectiva comparada” (Editora FGV, 2023), escrito por André Marenco. Nele, é possível ver qualidades, problemas e desafios do Estado brasileiro ao longo da história, sem adotar um visão de solução única e imediata para a reforma administrativa. Além disso, o texto mostra que tão importante quando o conteúdo reformista são suas formas de implementação.

Dada a importância dos caminhos reformistas, do mesmo modo que temos muito a aprender com a perspectiva que orientou a reforma Bresser, vale muito compreender as razões que têm favorecido hoje o bom andamento da reforma tributária e do novo marco fiscal. Suas tramitações revelam claramente que é preciso definir prioridades urgentes, construir um modelo baseado no diálogo entre políticos e especialistas e entre o Executivo e o Congresso, conquistar apoio social às medidas e estabelecer um cronograma incremental de mudanças, algumas se iniciando agora e outras com transição mais longa. Esse é um roteiro factível e baseado em evidências que pode guiar a reforma administrativa.

Não é possível saber ainda se o Congresso Nacional vai mesmo levar adiante uma proposta de reforma administrativa. De todo modo, o país precisará continuamente de reformas de gestão, numa trilha incremental e que responderá a desafios dinâmicos. A única coisa que não deve mudar é seu objetivo ontológico: ter um Estado voltado às demandas dos cidadãos brasileiros, em termos de democratização, eficiência, efetividade e equidade. Essa é a lição mais profunda que Bresser me deixou, e que espero ser um brado profundo que atinja as próximas gerações.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Um comentário:

marcos disse...

"...e discutiu a necessária avaliação contínua dos funcionários públicos, para que a estabilidade, essencial nos regimes democráticos, fosse garantida por meio do mérito."

Essencial para a democracia é a participação cada vez maior da população.

Não vejo como possa haver avaliação de mérito com estabilidade e o contrário, estabilidade via avaliação do mérito, é negar a realidade; é delírio.

MAM