terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Usar multidão contra a Justiça mostra que Bolsonaro não muda

O Globo

Não é tolerável numa democracia que ex-presidente use sua força política para atacar investigação sobre golpe

Alvo de investigação da Polícia Federal sobre tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente Jair Bolsonaro liderou uma gigantesca manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, no domingo. Quarteirões ficaram lotados com manifestantes vestindo camisas amarelas. Caravanas de ônibus chegaram de todo o país. Havia veículos de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco. A estratégia era evidente desde antes do ato: usar as ruas para tentar proteger Bolsonaro da Justiça. Isso ficou explícito quando o próprio Bolsonaro, microfone em mãos, afirmou querer “passar uma borracha no passado”.

As suspeitas sobre Bolsonaro, ministros e apoiadores são graves. Elas devem ser investigadas a fundo e, comprovada culpa, a punição deve ser severa. Tramar para subverter a vontade expressa pelo voto popular é o crime mais grave numa democracia. “Passar uma borracha”, como quer Bolsonaro, tornaria mais provável um novo plano de golpe no futuro. Seria também um ataque intolerável à noção, basilar numa democracia, de que todos são iguais perante a lei. Quem consegue atrair multidões para manifestações deve receber o mesmo tratamento dado a qualquer suspeito. Não dá para aceitar esse subterfúgio para pressionar a Justiça.

A demanda por anistia chegou ao absurdo quando Bolsonaro admitiu a existência do documento conhecido como “minuta do golpe”. “Agora, o golpe é porque tem uma minuta de um decreto de Estado de Defesa. Golpe usando a Constituição? Tenham santa paciência”, disse Bolsonaro. Na versão dele, o rascunho de decreto encontrado na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, instalando Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), era inofensivo. Nada mais longe da verdade. O objetivo da minuta era mudar o resultado das eleições de 2022, vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva. De constitucional, não tinha nada. A partir da delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, a PF investiga os indícios de que o ex-presidente tenha participado da redação final do texto.

Ao mesmo tempo que representa uma manobra para pressionar a Justiça, a manifestação da Paulista demonstra que, do ponto de vista político, Bolsonaro mantém a liderança da parcela conservadora da sociedade brasileira. Mesmo tendo sido declarado inelegível até 2030 por decisão do TSE — que o condenou por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao atacar, sem provas, a lisura das urnas eletrônicas —, ele reuniu sob suas asas os principais governadores da oposição, diversos deputados e uma multidão estimada em 185 mil pessoas. Embalado pelo discurso que mistura pregação religiosa, loas à polícia, negacionismo eleitoral e liberalismo econômico, Bolsonaro atraiu inúmeros insatisfeitos com o governo Lula.

O mar de camisas amarelas na Paulista é um alerta para Lula e os partidos de esquerda. O movimento identificado com a direita e a ultradireita se consolidou e deverá manter força eleitoral. Isso é uma lembrança eloquente de que a vitória de Lula foi garantida não apenas pelos votos da esquerda, mas sobretudo pelos eleitores de centro que não queriam Bolsonaro. Governar apenas para os petistas — como ele faz ao retroceder em agendas superadas, caso do gigantismo das estatais — equivale a ignorar essa realidade. Com isso, Lula certamente sofrerá consequências políticas e eleitorais.

Tragédia ianomâmi persiste apesar das promessas feitas por Lula

O Globo

Situação na reserva indígena continua dramática, e mortes em 2023 aumentaram 6%

A tragédia que aflige o povo ianomâmi parece distante de uma solução, a despeito das ações do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No ano passado, foram registradas 363 mortes nas aldeias, 6% a mais que as 343 notificadas em 2022, segundo boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde na semana passada. O governo alega que os números anteriores estavam subnotificados e que a presença mais intensa do Estado na reserva permitiu melhorar os registros. Por mais que isso possa ser verdade, as mais de três centenas de mortes — resultado de malária, desnutrição, diarreia, pneumonia e outras mazelas — são sinal contundente do fracasso. O próprio governo admite que ainda há subnotificação nos números.

Em janeiro do ano passado, um dia depois de o Ministério da Saúde decretar emergência na reserva ianomâmi, Lula visitou a região ao lado de oito ministros. A situação não era diferente da exibida em reportagem do Fantástico em 2021. Crianças e mães esquálidas eram o retrato de uma comunidade abandonada pelo poder público. Politizando a questão, Lula acusou Jair Bolsonaro de genocídio contra o povo ianomâmi e disse que a situação demandava “medidas mais drásticas”. Pelo visto, ficou no discurso.

É verdade que as Forças Armadas foram envolvidas em ações emergenciais, mas, além de insuficientes, elas não tiveram continuidade. A anunciada repressão ao garimpo ilegal fracassou. Sem medidas permanentes, os garimpeiros expulsos da reserva não tardaram a voltar. No fim do ano passado, o próprio governo reconheceu o problema.

Na prática, o povo ianomâmi continua abandonado à própria sorte. Os distritos de saúde nas aldeias, quando existem, não têm equipes médicas ou remédios suficientes para doenças evitáveis. Em setembro passado, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), cobrou do governo um relatório detalhado sobre as medidas adotadas para proteger os ianomâmis. A decisão foi tomada depois que associações indígenas denunciaram aumento no garimpo ilegal.

Nos últimos dias, diante da repercussão negativa do aumento nas mortes, o governo anunciou a construção de um hospital indígena em Boa Vista. Trata-se, porém, de medida de longo prazo, sem efeito num presente desalentador. Compreende-se que qualquer intervenção no território onde vivem mais de 30 mil ianomâmis demande logística complexa. Mas o próprio governo prometeu reagir ao abandono da gestão anterior e, até agora, pouco fez.

É uma vergonha o que acontece na reserva ianomâmi. O governo tem obrigação de levar assistência médica às aldeias. Ao mesmo tempo, precisa combater o garimpo ilegal, que, ao contaminar as águas dos rios, também contribui para degradar a saúde da população. Lula deveria falar menos e fazer mais pelo povo ianomâmi.

Ato político não deve intimidar investigação

Folha de S. Paulo

Bolsonaro comprova popularidade na Paulista, o que não pode impedir apuração equilibrada de suposta tratativa golpista

São raros os líderes políticos capazes de mobilizar multidões, mesmo no auge de seu prestígio. Jair Bolsonaro (PL) o fez estando inelegível, por um ato infame de difamação do sistema eleitoral do país, e sob investigação por golpismo.

Chama a atenção, de fato, o comparecimento de milhares à manifestação de apoio ao ex-presidente realizada no domingo (25), na avenida Paulista, que resultou nas desejadas e inevitáveis imagens da aglomeração de camisas amarelas e bandeiras nacionais.

Bolsonaro conta com a adesão convicta de um quarto dos brasileiros, não muito distante dos 30% que, segundo o Datafolha, depositam sua plena confiança no petismo de Luiz Inácio Lula da Silva. Os índices de identificação com os dois polos ideológicos se mantêm quase inalterados desde as eleições de 2022 —o que é mais digno de nota no caso do perdedor.

Reforça-se a hipótese de resiliência da direita popular e populista que ascendeu no Brasil e no mundo, com franjas radicais tendendo não poucas vezes à truculência e ao autoritarismo. Em dezembro, apenas 8% dos eleitores de Bolsonaro, apeado do poder por margem mínima de votos, diziam-se arrependidos da escolha.

Tamanho ativo eleitoral explica a presença de autoridades relevantes no palanque da Paulista. Governadores como Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, e Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, embora distantes da pregação bolsonarista contra as instituições, são candidatos a herdeiros do apoio ao líder carismático.

Com a mostra de força política, o ex-mandatário pretendeu, mesmo com retórica estrategicamente contida, intimidar a operação judicial e policial que hoje investiga a extensão de suas ruminações golpistas no Planalto. Nesse intento, não pode nem deve ter sucesso.

Há indícios graves de que um grupo de auxiliares civis e militares tramou subverter a iminente derrota eleitoral do chefe em 2022. No ato público, Bolsonaro desqualificou as suspeitas em torno de uma minuta de decreto de estado de defesa. A existência de um documento do gênero foi revelada pela Folha em janeiro do ano passado.

Se supostas tratativas como essas avançaram a ponto de configurar uma tentativa criminosa de abolição do Estado de Direito, é caso a ser decidido a partir de apuração sóbria e rigorosa e o devido processo legal, que deveria ter a Procuradoria-Geral da República como parte acusadora, se houver elementos para tanto, e o Supremo Tribunal Federal como julgador imparcial.

As investigações precisam prosseguir —com equilíbrio, sim, mas sem nenhum temor.

Sete Brasil naufraga

Folha de S. Paulo

Pedido de falência alerta para iniciativas do PT nos setores naval e petrolífero

Em recuperação judicial desde 2016, a Sete Brasil pediu falência à Justiça, deixando pelo caminho um rastro de dívidas, má gestão e escândalos de corrupção.

Fundada em 2010 como um consórcio de grandes acionistas privados, fundos de pensão e a Petrobras, no auge da megalomania petista com a descoberta do pré-sal, a empresa deveria gerenciar a compra e a operação de sondas para exploração de novas áreas.

Contudo nem sequer chegou perto de seu plano de fornecer 28 desses equipamentos para a petroleira. Acabou engolfada logo nos primeiros anos por denúncias de propinas e sobrepreço.

Com os atrasos no fornecimento e o impacto da Operação Lava Jato, a Petrobras não manteve os contratos, e apenas quatro sondas entraram em operação, parte ínfima do projeto original.

O imbróglio gerou dívidas de R$ 18 bilhões com bancos e investidores, além de processos contra executivos acusados de corrupção.

Durante o processo de recuperação judicial, a Sete Brasil tentou vender as quatro sondas para a Petrobras por cerca de R$ 1 bilhão e, assim, antecipar pagamentos aos credores —que não passariam de uma fração do montante devido.

Agora, com o pedido de falência, essas negociações são frustradas, e as chances de chegar a uma solução são ainda mais remotas.

O que se observa é a agonia de um projeto que já nasceu em meio a conflitos de interesse e vícios de governança que contaminaram todos os entes que dele participaram, fossem privados ou públicos.

O aprendizado que deveria ficar do episódio, assim como de outras empreitadas nos setores naval e petrolífero, é de ceticismo. Não é fácil tirar do papel projetos complexos para setores altamente intensivos em capital, e o governo federal já enterrou bilhões em pelo menos três iniciativas similares.

Num momento em que Palácio do Planalto e BNDES ensaiam novas aventuras na área naval, declarando levar em conta os erros do passado, o esqueletos da Sete Brasil e de estaleiros fracassados devem servir como lembrança dos riscos que esse tipo de política ensejam para os contribuintes.

Começou o pós-Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Em ato na Paulista, Bolsonaro se limitou a pedir anistia, enquanto um de seus principais herdeiros, Tarcísio, já o tratava como um retrato na parede, candidatando-se a herdar seus votos

A manifestação bolsonarista de anteontem na Avenida Paulista serviu para evidenciar o contraste entre os objetivos de Jair Bolsonaro e os de quem pretende herdar seu espólio eleitoral. Com um discurso politicamente anódino, Bolsonaro parecia ter-se dado por vencido de que deverá, mais cedo ou mais tarde, prestar contas à Justiça em razão das cada vez mais robustas evidências de que urdiu um golpe para permanecer no poder, restando-lhe apenas apelar por uma improvável anistia. Por outro lado, ao dizer que “Bolsonaro não é mais um CPF, não é uma pessoa, ele representa um movimento”, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, tratou o ex-presidente, na prática, como um retrato na parede. Sendo ele mesmo perfeitamente elegível, ao contrário de seu padrinho político, Tarcísio claramente se apresentou como candidato a líder desse movimento – numa disputa contra outros vários presentes ao lado de Bolsonaro na Paulista.

Se os termos da convocação para o ato já não escondiam o propósito de Bolsonaro, o discurso do ex-presidente em cima de um trio elétrico reforçou sua intenção de explorar o público presente na Paulista para afrontar, a um só tempo, a História, a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal a fim de escapar da cadeia. “Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil”, disse Bolsonaro, referindo-se à anistia que pavimentou o caminho para a redemocratização do País. “O que eu busco é a pacificação. É, por parte do Parlamento, uma anistia para aqueles pobres coitados presos em Brasília”, completou, tratando como “pobres coitados” a malta ensandecida que vandalizou física e moralmente as instituições democráticas no 8 de Janeiro.

Por óbvio, Bolsonaro não dá a mínima para as agruras no cárcere experimentadas por cada um daqueles homens e mulheres, jovens e idosos, que, em seu nome, passearam naquele dia infame pelos tipos penais previstos na Lei 14.197/2021, que trata da defesa do Estado Democrático de Direito. Como sempre, Bolsonaro está preocupado apenas com seu destino – no máximo, com os de seus familiares e aliados próximos. Nesse sentido, é bastante sintomático que Bolsonaro tenha agradecido a seus apoiadores por terem proporcionado “uma fotografia para o mundo, uma imagem para o Brasil e para o mundo do que é a garra do povo brasileiro”. Era só com isso que Bolsonaro estava preocupado.

A política que faltou no discurso de Bolsonaro sobrou no de Tarcísio de Freitas. O governador paulista, único a quem foi dada a palavra entre os governadores presentes na manifestação – Romeu Zema (MG), Ronaldo Caiado (GO) e Jorginho Mello (SC) –, fez um breve inventário de algumas das alegadas realizações da gestão Bolsonaro. Logo em seguida, destacou que os milhares de manifestantes reunidos na Avenida Paulista lá estavam para “celebrar o verde e amarelo, o amor ao nosso país e o Estado Democrático de Direito”, sendo fundamental “entender os seus desafios”.

O poder de mobilização de Bolsonaro é incontestável, como mostra a multidão reunida na Paulista. Mas, enquanto o ex-presidente se limita a vociferar contra o “comunismo” em cima de um carro de som e a se dizer “perseguido”, Tarcísio e outros já estão com os olhos no futuro e seus “desafios”.

Essa direita se une por Bolsonaro hoje na exata medida da necessidade de preservar para si o potencial eleitoral do “mito” – mas é bom lembrar que o governador paulista, tão agradecido a seu padrinho, é o mesmo que não se sentiu constrangido em estabelecer um diálogo construtivo com o presidente Lula da Silva, demonizado pelos extremistas de camisa da seleção brasileira, e em apoiar a reforma tributária à revelia do ex-presidente. Ou seja, os prováveis herdeiros de Bolsonaro, ao mesmo tempo que compreendem as demandas – muitas das quais legítimas – dos que foram à Paulista, oferecem a superação do radicalismo bolsonarista, não só para ampliar o eleitorado fora da extrema direita, mas, sobretudo, para deixar claro seu caráter democrático – essencial para a pacificação que Bolsonaro só quer da boca para fora.

O impacto da inteligência artificial no trabalho

O Estado de S. Paulo

Estudo do FMI conclui que, ao expor 40% dos empregos do mundo a seus efeitos, a IA elevará o fosso entre ricos e pobres; educação e proteção social são os únicos antídotos

O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que 40% dos empregos no mundo estarão expostos aos efeitos da inteligência artificial (AI). O cálculo impressiona porque não haverá remédio para parte desses postos de trabalho: vai desaparecer. Mas, como adverte o estudo IA Generativa: A Inteligência Artificial e o Futuro do Trabalho, no qual o dado está inserido, o cenário tende a ainda ser mais doloroso. Ao dizimar atividades laborais e até setores econômicos inteiros, essa revolução tecnológica elevará as tensões sociais em diversas nações e aprofundará o fosso entre os países mais ricos e os mais pobres.

Para o Fundo, esse efeito da IA somente será mitigado com mais e melhores políticas públicas sociais, de distribuição de renda e de educação. “Para todas as economias, redes de segurança social e de treinamento para os trabalhadores mais suscetíveis à inteligência artificial são cruciais para assegurar a inclusão”, afirma o estudo, realizado com base em análises do mercado de trabalho, do sistema produtivo e do potencial de absorção dessa tecnologia em 174 países.

A recomendação do FMI vale, sobretudo, para as economias emergentes, como o Brasil e a Índia, e as menos desenvolvidas, entre as quais as africanas e as centro-americanas. Em comum, esse conjunto de nações traz históricos níveis de desigualdade social e, salvo exceções, minguados recursos e/ou vontade política para adotar programas públicos de proteção aos mais vulneráveis. Não se antevê melhora substancial em suas condições fiscais para mitigar os danos da revolução laboral provocada pela IA – que, certamente, os alcançará. Tensões sociais, segundo o Fundo, estão no radar.

É certo que a inteligência artificial, como destaca o FMI, seguirá um cronograma de absorção mais lento nessa parcela do mundo. Com a ampla massa de empregos de baixa qualificação e o alto grau de informalidade no mercado laboral, os efeitos da IA nesses países serão moderados, se comparados com o mundo desenvolvido. As economias emergentes estarão alinhadas à média global de 40% de empregos afetados, segundo o Fundo. Nas menos desenvolvidas, não passará de 26%. O menor impacto, porém, está muito longe de ser uma bênção. Esses mesmos países tardarão a usufruir das vantagens da tecnologia inovadora: o choque de produtividade, o aumento de renda do trabalho e o crescimento econômico.

Nas economias avançadas, onde modelos de inteligência artificial não raro são patenteados, os efeitos negativos já começam a ser observados no mercado de trabalho. Nos cálculos do FMI, 60% dos empregos serão afetados, dos quais a metade deve desaparecer. Os sobreviventes tenderão a ser profissionais com educação superior nas funções com complementaridade com a IA. Haverá, obviamente, filas de demitidos sem a mínima condição de empregabilidade, como costuma acontecer sempre que há avanços tecnológicos. Portanto, o risco de tensões sociais tampouco estará afastado no mundo desenvolvido.

Considerado pelos pesquisadores do FMI como caso intermediário entre economias ricas e pobres, o Brasil está sujeito a ver 41% de seus empregos afetados pela IA, em linha com a média mundial.

Para o Fundo, a tábua de salvação para 43,7% dos trabalhadores brasileiros estará na educação superior – um diferencial que lhes permitirá buscar postos de trabalho nos quais a IA seja complementar. A alternativa de correr para setores menos afetados implicará perda salarial. O remédio receitado pela instituição financeira ao País não foge à regra geral: investimento em educação e no reforço dos programas sociais.

A transformação prevista no mercado de trabalho, por força da IA, não tem precedentes, na avaliação do Fundo. Se as máquinas a vapor, a divisão fordiana da produção e a informática deixaram multidões de excluídos e acentuaram as diferenças entre nações industrializadas e pobres, o que está por vir mostrase mais profundo. A consolidação de um mundo bem mais desigual já está nas contas do FMI. É preciso ouvir a instituição financeira o quanto antes: há antídotos, e eles estão nos investimentos em educação e em segurança social.

Lula precisa se desculpar

O Estado de S. Paulo

Presidente da República deve esse gesto aos judeus e aos humanistas ofendidos por suas declarações

Já se passou mais de uma semana da ofensiva declaração do presidente Lula da Silva comparando os horrores vistos na Faixa de Gaza ao Holocausto. É um tempo evidentemente curto demais para a História e breve o suficiente para o esquecimento do erro e sua substituição por outra crise. Por sua gravidade, no entanto, nem a repugnante declaração foi esquecida nem a História deverá preservar o presidente do julgamento moral por ter ultrapassado a fronteira do antissemitismo e do desconhecimento dos fatos.

Nos últimos dias, Lula tentou redirecionar sua fala para a defesa de que o governo de Israel pratica genocídio em Gaza. Seu principal assessor internacional, o ex-chanceler Celso Amorim, também pôs o dedo em riste para o governo israelense e assim respondeu à cobrança para que o seu chefe peça desculpas a Israel por ter equiparado as ações em Gaza aos métodos de Hitler: “Vai ficar pedindo. (...) Não sei se ele (Binyamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel) faz isso por demagogia interna ou por qualquer outra razão, mas, certamente, se ele está esperando isso, não vai receber”.

Acostumado a enxergar o mundo segundo os estreitos limites de seu umbigo, e com a convicção de que é moralmente superior por se considerar a encarnação do “povo”, Lula pode achar que as reações críticas a ele se restringem a extremistas, direitistas, conspiradores, imperialistas do Norte e elites do Sul. Não. A lista de atingidos é muito mais extensa: o presidente ofendeu não só os judeus e não só a memória dos assassinados nas câmaras de gás, mas todos os cidadãos de consciência justa e humanista.

Se é verdade que a barulhenta reação da diplomacia israelense colocou limites políticos a um eventual recuo do presidente brasileiro, também é verdade que Lula, Amorim, os bajuladores de praxe e a militância mais empedernida não perceberam o óbvio: é o momento de separar as sandices do governo israelense dos seus cidadãos e de todos os judeus que se ofenderam com a comparação. A contrição será o único modo de atenuar os efeitos de sua absurda declaração, mostrar que está genuinamente interessado na paz e se desculpar por uma comparação que, na prática, desmereceu o sofrimento de milhões de judeus, seus descendentes e todas as pessoas solidárias mundo afora. Ao fazê-lo, Lula dará ainda mais peso às suas críticas, legítimas, à truculência israelense em Gaza.

Além da ofensa que espalhou, as brasas sopradas pelo presidente moldam um ambiente no qual floresce o oportunismo de extremistas – em Israel e no Brasil. Lá, a canelada diplomática do Brasil ajudou Netanyahu a galvanizar apoio interno contra os que criticam a guerra. Aqui, estimulou factoides como um pedido de impeachment de Lula e vitaminou ânimos bolsonaristas, algo providencial para o fortalecimento da manifestação do último domingo, em São Paulo, em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

Lula pode até se recusar a se retratar perante o governo israelense, dada a grosseria com que foi tratado, mas ainda precisa pedir desculpas ao povo judeu. A um só tempo, Lula demonstraria grandeza e esvaziaria a crise. Mas a soberba parece falar mais alto.

Recuperação judicial ainda reflete sequelas da pandemia

Valor Econômico

Consultorias especializadas relatam maior procura pelas renegociações com credores e estimam alta nos pedidos de recuperação judicial para 2024, após recorde no ano passado

O pedido de recuperação judicial da Gol nos Estados Unidos, apelando ao mecanismo de proteção da legislação americana sob o Chapter 11, no fim de janeiro, acendeu um sinal de alerta no mercado. Apesar da redução dos juros, há empresas em dificuldades. O crescimento econômico ainda é insuficiente para dar tração aos negócios. Entre os setores com problemas estão o varejo, a construção civil e a agropecuária, que deve enfrentar clima mais adverso e produção menor neste ano.

Algumas empresas não superaram os problemas surgidos na pandemia, quando conseguiram sobreviver com a ajuda dos bancos, incentivados a renegociar as dívidas e a repassar linhas de crédito especiais de apoio. As empresas se endividaram com taxas baixas entre 2020 e 2021, acabaram enfrentando a forte elevação dos juros em 2022, redução da oferta de crédito e a queda da geração de caixa. Muitos contratos estão vencendo entre agora e 2025. Levantamento do Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec-Fipe) constatou que o índice de inadimplência de pessoas jurídicas se manteve em alta, em 3,58% em novembro do ano passado, mais que o dobro do 1,45% visto no fim de 2020.

Os juros começaram a recuar no ano passado, embora ainda estejam em níveis muito altos em termos reais, quando se descontam as previsões para a inflação nos próximos 12 meses. Além disso, o impacto da queda das taxas na vida das empresas demora. A consultoria RK Partners calcula que, na média, os juros do crédito para capital de giro já caíram três pontos percentuais de janeiro de 2023 para o mês passado, de 30,3% para 27,3% ao ano. A consultoria estima que a queda das taxas leva de 18 a 24 meses para ter efeito nas contas das empresas, o que sustenta a sua previsão de que o ano de 2024 ainda vai ser ruim (Valor, 15/2).

Além de o dinheiro custar caro, a oferta de crédito cresceu a um ritmo mais fraco no ano passado. Depois de ter subido 14,5% em 2022, aumentou praticamente metade em 2023, 7,9%, para R$ 5,8 trilhões. As operações com as empresas se expandiram menos, 4,5%, em comparação com 10,1% no ano anterior. O crédito ampliado, calculado pelo Banco Central incluindo operações de mercado de capitais, teve expansão de 4,3%, sendo 15% registrados pelos títulos privados de dívida e 28,6% pelos papéis securitizados. A perspectiva é de ligeira melhora na oferta de crédito neste ano. Mas nada expressivo. O mercado financeiro projeta repetir a dose com aumento de 8%, e o próprio Banco Central prevê apenas um pouco mais, 8,8%.

Com o caixa apertado pelos compromissos financeiros, as empresas buscam localizar um comprador ou sócio, renegociar as dívidas com credores ou até pedir recuperação judicial. Arrumar alguém que injete recursos é uma alternativa difícil. Há mais de dois anos não há uma oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) na bolsa brasileira.

Havia a expectativa de que essas operações fossem retomadas já neste início de ano. No entanto, as dúvidas em relação à política monetária americana adiaram um pouco mais esses negócios. Cresce o sentimento de que o juro só vai cair no segundo semestre nos Estados Unidos. Há espaço para as emissões de títulos de renda fixa, embora essa não seja uma alternativa para empresas de todo porte. Embora o desempenho do PIB seja razoável, o ritmo ainda deixa a desejar e é insuficiente para reanimar uma parte das empresas.

Nesse quadro, consultorias especializadas em reestruturação de dívidas relatam maior procura pelas renegociações com credores, processos que vinham sendo postergados na expectativa de se abrir espaço para negociar ou captar recursos no mercado. Relatório da TCP Partners, que acompanha 60 setores, projeta crescimento de 6% nos pedidos de recuperação judicial neste ano em relação a 2023, quando houve um aumento recorde. Segundo dados da Serasa Experian, os pedidos de recuperação judicial subiram 68,7% no ano passado e somaram 1.405, o maior valor desde 2020. Entre eles, 135 foram de grandes companhias, e o restante, de pequenas e médias empresas. A maior quantidade de pedidos veio dos setores de cultivo de cana-de-açúcar, laticínios, construção de rodovias e de ferrovias (Valor 5/2).

No fim de 2023, nada menos do que 4.045 empresas estavam em processo de reestruturação, conforme o Monitor RGF de Recuperação Judicial, desenvolvido pela consultoria RGF & Associados. O problema de muitas delas é o endividamento elevado constituído a partir da pandemia. O caso da Gol é ilustrativo. O impacto da pandemia no setor de aviação foi dos mais relevantes. Hoje, duas a cada mil empresas em atividade estão em recuperação judicial, estima a consultoria.

Para alguns especialistas, porém, o problema é maior. Segundo a RK Partners, do universo de 21 milhões de empresas existentes no país, quase 7 milhões têm ao menos uma dívida vencida. Muitas não vão pagar o débito e terão que renegociar. Elas vão tentar evitar ao máximo apelar para a recuperação judicial, porque o processo é longo e tem um custo elevado. De 128 reestruturações realizadas pela consultoria, só pouco mais de 20% foram recuperações judiciais.

Estupro exige ações rigorosas

Correio Braziliense

A falta de educação, traduzida em desrespeito, somada ao machismo e à depreciação da mulher, está entre as motivações do estupro, além dos distúrbios psicossoais. Os homens não admitem que "não é não"

O ex-jogador de futebol Daniel Alves foi condenado a 4 anos e meio de prisão e a mais 5 de liberdade assistida pela Justiça da Espanha, pelo estupro de uma mulher. Diferentemente do Brasil, o julgamento do atleta foi por uma bancada de três juízes da Corte espanhola. De acordo com a legislação daquele país europeu, as penas variam de 4 a 12 anos de privação de liberdade para o agressor. No Brasil, réu é julgado por um um juiz, mas a punição é um pouco mais rigorosa, variando de 6 a 10 anos, e de 10 a 30 anos — dependendo dos danos causados à vítima: de 8 a 15 anos, podendo ser a aumentada no caso de lesão grave, entre 10 e 20 anos, e, em caso de morte, até a 30 anos.

Em 2020, o ex-jogador Robinho foi condenado pela Justiça italiana a 9 anos de prisão por participação em um estupro coletivo de uma jovem ibanesa. Evadiu-se rapidamente para o Brasil, onde, até hoje, o julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) não aconteceu — há possibilidade de que ocorra neste ano. Mas diante das brechas na legislação, os defensores conseguem postergar a decisão judicial, sobretudo quando o réu tem fama e dinheiro.

Em recente entrevista ao jornalista Vicente Nunes, correspondente dos Diários Associados em Lisboa, a ex-modelo Luiza Brunet, hoje empresária e engajada no movimento feminista, condenou os atos de violência sexual dos atletas brasileiros: "Os jogadores de futebol têm de se educar, não estuprar".

A falta de educação, traduzida em desrespeito, somada ao machismo e à depreciação da mulher, está entre as motivações do estupro, além dos distúrbios psicossoais. Os homens não admitem que "não é não". A avalanche de casos de violência sexual coloca o Brasil entre os países mais violentos em relação às mulheres, às crianças e aos adolescentes.

Em 2023, o país ocupava a 11ª posição no ranking mundial de violência sexual contra às mulheres, com 34 mil vítimas no primeiro semestre — aumento de 14,9% em relação a igual período de 2022 — segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em 2022, foram registrados 73.024 casos de estupro registrados, sendo que as  vítimas menores de 14 anos (meninas e meninosm, enfermos ou com deficiência mental) chegaram a 56.820.

No grupo de vulneráveis, 40.659 tinham 13 anos ou menos (61,4%) dos casos. Os meninos também são violentados e eles somaram 14% dos casos, sendo que 43,4% tinham entre 5 e 9 anos. Um segmento social que não sabe dizer "não" e, boa parte, sequer tem compreensão da violência a que está sendo submetida. Por mais absurdos que os números pareçam, os pesquisadores alertam que eles não retratam a realidade, pois há uma subnotificação, principalmente quando o abusador tem parentesco com a vítima.

Diante de um quadro tão perverso, com danos físicos e psicossociais gravíssimos e muitos irreversíveis, o Senado Federal aprovou emenda à Constituição que torna o estupro crime imprescristível. Mas só o agravamento das punições não muda o cenário. Educar e orientar crianças e jovens para que saibam reconhecer um gesto de assédio é essencial para que possam se defender e alertar pais, responsáveis, professores.

Desde o ano passado, o governo federal voltou a inserir na grade escolar a orientação técnica sobre educação em sexualidade, para que as potenciais vítimas saibam se defender. A gravidade do tema impõe não só ações penais, mas mecanismos mais seguros de proteção às crianças, aos jovens e às mulheres, sem desprezar as punições severas aos agressores. Mas também cabe às famílias não proteger os estupradores — sejam eles da família, sejam do círculo de amigos. Estupro exige um combate sem tréguas. 

 

 

 

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