O crescimento do fundamentalismo religioso é
outra faceta da instrumentalização da fé. Isso se manifesta quando
determinados grupos interpretam suas escrituras sagradas de maneira
literal e buscam impor suas crenças como a única verdade, marginalizando aqueles
que pensam diferente, não comungam da mesma fé ou simplesmente não creem.
Essa instrumentalização frequentemente encontra terreno fértil em
momentos de instabilidade social e política. Em períodos de incerteza, as
pessoas muitas vezes buscam consolo e segurança em suas crenças
religiosas, o que pode ser explorado por líderes políticos em busca de
capitalizar sobre essa condição.
A intersecção forçada entre religião e política pode resultar na manipulação da fé para consolidar poder, minando os princípios de tolerância e respeito mútuo e contrariando a separação necessária entre Estado e religião. Além disso, a ascensão de líderes religiosos carismáticos e influentes na esfera pública contribui para a utilização dos templos como espaços de política e não de fé. Esses líderes frequentemente exercem influência significativa sobre suas congregações, manipulando-as para apoiar determinadas agendas políticas ou sociais, por vezes promovendo a defesa de projetos que se opõem aos interesses sociais dos próprios congregados.
No entanto, é importante destacar que a
instrumentalização da fé não é exclusiva do Brasil; é um fenômeno global.
Em diferentes partes do mundo, observamos casos similares em que a
religião é utilizada como ferramenta para alcançar objetivos seculares e
a tomada do poder político, principalmente pela ultradireita e
extrema-direita, que vêm impactando diversos países, incluindo o Brasil.
Nesse contexto, a manipulação de princípios religiosos para avançar
políticas específicas tornou-se uma estratégia recorrente, gerando
efeitos consideráveis no âmago da sociedade.
Um dos sintomas mais evidentes é a utilização
da religião como ferramenta para consolidar uma agenda política
regressiva e reacionária. Líderes da extrema-direita, como tática, buscam
alinhar suas políticas a valores religiosos, atraindo assim o apoio de comunidades
que compartilham essas crenças. Esse alinhamento estratégico pode levar a
políticas públicas que refletem uma interpretação particular da fé,
muitas vezes em detrimento da laicidade do Estado e contra a democracia.
Isso reafirma a necessidade de uma abordagem ampla para compreender e
enfrentar esse fenômeno, promovendo o diálogo inter-religioso, a educação para a tolerância e o respeito à diversidade de crenças, bem como a importância
do Estado laico nas democracias.
A intolerância religiosa, nesse contexto, surge como um desdobramento preocupante, podendo estimular a hostilidade contra grupos religiosos minoritários ou com práticas diversas. Isso não apenas mina a coesão social, mas também cria divisões profundas na sociedade, alimentando um ambiente propício a conflitos. O crescimento do fundamentalismo religioso é outra manifestação dessa instrumentalização. Grupos políticos muitas vezes se aliam a fundamentalistas que compartilham objetivos políticos comuns. Essa colaboração pode resultar em práticas que favorecem uma interpretação sectária da fé, marginalizando outras visões e contribuindo para a polarização social e a negação do direito de crença do outro, na visão deturpada de que "se minha fé é a portadora da verdade, a sua deve ser destruída, pois não é".
A ascensão de líderes carismáticos na
extrema-direita, que se apresentam como defensores de valores morais e
religiosos, também desempenha um papel crucial nessa equação. Eles têm a
capacidade de mobilizar massas, utilizando a fé popular como elemento
central de sua retórica, criando uma dinâmica em que as crenças
religiosas são empregadas para legitimar suas agendas pessoais, muitas
vezes em detrimento da pluralidade de visões na sociedade e negando ao outro
o direito de crer ou divergir.
A instrumentalização da religião é uma
realidade que tem impactado o Brasil nas últimas décadas, manifestando-se
em diversos aspectos políticos e sociais, tendo seu ápice na ascensão de
Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Durante sua campanha, ele
estabeleceu alianças estratégicas com líderes evangélicos e setores conservadores,
incorporando uma perigosa retórica religiosa em seu discurso político.
Esse alinhamento estratégico entre a extrema direita e líderes religiosos foi
evidenciado pelo apoio maciço desse segmento, que viu em Bolsonaro um
defensor de valores conservadores, como a oposição à população LGBTQIAPN+
e a defesa de uma chamada família "tradicional".
Essa reconexão entre política e religião, que
nega o legado de mais de dois séculos da Revolução Francesa, foi
fundamental para consolidar uma base de apoio sólida que alcançava uma
parte considerável da população, demonstrando como a instrumentalização
da fé pode ser utilizada como ferramenta para conquistar votos e
influenciar a política de forma decisiva e perniciosa. Um exemplo é a
abordagem em relação às questões de gênero e sexualidade nas políticas educacionais
do governo brasileiro a partir de 2019. Foi promovida uma agenda que
buscou restringir a discussão sobre diversidade sexual e de gênero,
muitas vezes utilizando argumentos baseados exclusivamente em convicções
religiosas.
Nesse contexto, a prática de intolerância contra praticantes de religiões de matriz africana levou esses grupos a sofrer profunda discriminação, e os casos de violência aumentaram. A retórica preconceituosa da extrema-direita contribuiu para a disseminação de estereótipos religiosos, minando a coexistência pacífica entre diferentes crenças. Outro exemplo evidente é o apoio que grupos extremistas receberam do governo passado em ações como a tentativa de criminalização do aborto legal, ancorada apenas em fundamentos morais e religiosos, ignorando a diversidade de perspectivas éticas na sociedade brasileira.
E apesar dessa ótica fascista ter sido
derrotada eleitoralmente em 2022, o "ovo da serpente" sempre
ameaça eclodir novamente, agora através de propostas legislativas que
buscam alinhar o ordenamento jurídico a determinadas interpretações
religiosas fundamentalistas. Projetos esses que pretendem limitar
direitos civis com base exclusivamente em convicções puramente
religiosas, devendo gerar nos próximos anos debates acalorados sobre a
laicidade do Estado e a proteção dos direitos individuais e coletivos.
Diante dos desafios decorrentes da instrumentalização da fé pela
política, é crucial considerar soluções abrangentes que abordem aspectos
políticos, sociais, jurídicos e educacionais apresentados pelos
defensores do Estado laico e democrático, como as seguintes:
1. Educação para o Respeito à
Diversidade:
Implementar programas educacionais que
promovam o respeito à diversidade religiosa e a compreensão intercultural
desde as séries iniciais.
Incentivar o ensino da história das
religiões, destacando suas contribuições culturais e promovendo a
coexistência pacífica entre todas as crenças.
2. Fortalecimento da Laicidade do Estado:
Reforçar a laicidade nas políticas públicas,
garantindo que as decisões governamentais não se baseiem exclusivamente
em convicções religiosas.
Revisar e aprimorar a legislação para
assegurar a separação efetiva entre instituições religiosas e o
Estado.
3. Combate à Intolerância Religiosa:
Reforçar a legislação de combate à
intolerância religiosa, garantindo que crimes motivados por questões
religiosas sejam rigorosamente punidos.
Promover campanhas de conscientização e
diálogo inter-religioso para enfrentar preconceitos e estereótipos.
4. Promoção do Diálogo Inter-religioso:
Estimular o diálogo construtivo entre líderes
religiosos de diferentes tradições, buscando pontos de convergência e
respeito mútuo.
Apoiar eventos e iniciativas que promovam a
compreensão e a colaboração entre diferentes comunidades religiosas junto
à sociedade.
5. Reforma Política:
Buscar medidas que reduzam a influência
excessiva de grupos religiosos na formulação de políticas públicas,
garantindo uma representação mais equilibrada de interesses
diversos.
Incentivar a transparência nas relações entre políticos e líderes religiosos, evitando acordos não éticos em troca de apoio eleitoral e a utilização dos púlpitos das igrejas para buscar votos.
6. Fortalecimento da Sociedade Civil:
Apoiar organizações da sociedade civil que
trabalhem pela promoção da diversidade religiosa, direitos humanos e
valores democráticos.
Fomentar a participação ativa da população em
debates públicos sobre temas que envolvem a relação entre política e
religião.
7. Capacitação de Líderes Religiosos:
Oferecer programas de capacitação para
líderes religiosos, destacando a importância da promoção da paz,
tolerância e respeito à diversidade da fé.
Incentivar a participação ativa desses
líderes em iniciativas que visem à construção de uma sociedade mais
inclusiva.
8. Incentivo à Mídia Responsável:
Promover a responsabilidade da mídia na
cobertura de questões religiosas, evitando a disseminação de discursos
que alimentem a intolerância, além de criminalizar e punir programas de
cunho religioso que ataquem outras crenças.
Incentivar a produção de conteúdos que
destaquem a diversidade de religiões e promovam a compreensão
mútua.
Ao adotar abordagens integradas em diferentes
áreas, é possível enfrentar os desafios associados à instrumentalização
da fé, promovendo uma sociedade mais justa, inclusiva e respeitosa com as diversas manifestações religiosas e culturais. Essas propostas visam não
apenas mitigar os sintomas, mas também abordar as causas subjacentes
desse triste fenômeno. Afinal, a crença ou não crença é algo individual,
assim como suas repercussões. O que um indivíduo compreende como uma
verdade fundamental por conta de sua fé diz respeito apenas a ele, e este
não pode querer impor seu pensamento ao conjunto da sociedade. Por isso,
a enorme importância de separar a religião do Estado.
*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos
Humanos de Pernambuco
Um comentário:
Excelente! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar este ótimo trabalho.
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