Folha de S. Paulo
A vitória esmagadora de Donald Trump e
do Partido
Republicano no último dia 5 levará a grandes mudanças em áreas
importantes na política dos Estados
Unidos, desde a imigração até a Ucrânia.
Mas o significado da eleição vai muito além dessas questões específicas e representa
uma rejeição decisiva dos eleitores americanos ao liberalismo e
à maneira particular como a compreensão de uma "sociedade livre"
evoluiu desde os anos 1980.
Quando Trump foi eleito pela primeira vez em
2016, era fácil acreditar que esse evento era uma aberração. Ele estava
concorrendo contra uma
oponente fraca que não o levava a sério e, de qualquer forma, Trump
não venceu no voto popular. Quando Biden conquistou a Casa Branca quatro anos
depois, parecia que as coisas tinham voltado ao normal após uma desastrosa
Presidência de um mandato só.
Após a votação do dia 5, agora parece que a
anomalia foi a Presidência de Biden, e que Trump está inaugurando uma nova era
na política dos EUA e talvez no mundo como um todo. Os americanos votaram nele com
pleno conhecimento de quem Trump era e o que ele representava. Não
só ele ganhou a
maioria dos votos e todos os estados-pêndulo, mas os
republicanos retomaram o Senado e parecem que
vão manter a maioria da Câmara dos Representantes. Dada a sua
já existente dominância na Suprema Corte, eles agora estão prontos para
controlar todos os Três Poderes do governo.
Mas qual é a natureza desta nova fase da história americana?
O liberalismo clássico é uma doutrina
construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um
Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais
sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos.
Mas, ao longo do último meio século, esse
impulso básico sofreu duas grandes distorções. A
primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina
econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de
proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais
rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O
poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e
outras partes do mundo em desenvolvimento.
A segunda distorção foi a
ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo
"woke" (forma como é chamado o discurso de pautas
identitárias nos EUA), em
que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por
proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados:
minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi
cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para
promover resultados sociais específicos para esses grupos.
Enquanto isso, os mercados de trabalho
estavam mudando para uma economia da informação. Em um mundo em que a maioria
dos trabalhadores se senta em frente a uma tela de computador em vez de
levantar objetos pesados do chão da fábrica, as mulheres têm uma posição mais
igualitária. Isso transformou o poder dentro das famílias e levou à
percepção de uma celebração aparentemente constante das conquistas femininas.
A ascensão desses entendimentos distorcidos a
respeito do que é o liberalismo impulsionou uma grande mudança na base social
do poder político. A classe trabalhadora sentiu que os partidos políticos de
esquerda não estavam mais defendendo seus interesses e começou a votar em
partidos de direita.
Assim, o Partido
Democrata perdeu o contato com sua base da classe trabalhadora
e se tornou um partido dominado por profissionais urbanos escolarizados. Os
trabalhadores escolheram votar nos republicanos. Na Europa,
eleitores do partido comunista na França e
na Itália desertaram
para Marine Le Pen e Giorgia
Meloni.
Todos esses grupos estavam insatisfeitos com
um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo
tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também
estavam insatisfeitos com partidos progressistas que aparentemente se
importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria
condição econômica.
Essas grandes mudanças sociológicas foram
refletidas nos padrões de votação na terça-feira. A vitória republicana foi
construída em torno de eleitores brancos da classe trabalhadora, mas
Trump conseguiu
atrair significativamente mais eleitores negros e hispânicos em
comparação com a eleição de 2020. Isso foi especialmente verdadeiro para os
homens dentro desses grupos. Para eles, a classe importava mais do que raça ou
etnia. Não há razão particular para que um latino da classe trabalhadora, por
exemplo, deva se sentir particularmente atraído por um liberalismo woke que
favorece imigrantes recentes e se concentra em avançar os interesses das
mulheres.
Também está claro que a grande maioria dos
eleitores da classe trabalhadora simplesmente não se importava com a ameaça à
ordem liberal, tanto doméstica quanto internacional, representada por Trump.
Donald Trump não quer apenas reverter o
neoliberalismo e o liberalismo woke, mas é uma
grande ameaça ao próprio liberalismo clássico. Essa ameaça é
visível em várias questões políticas; uma nova Presidência de Trump não se
parecerá em nada com seu primeiro mandato. A verdadeira questão neste ponto não
é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir
o que ameaça.
Muitos
eleitores simplesmente não levam sua retórica a sério, enquanto
republicanos tradicionais argumentam que os freios e contrapesos do sistema
americano o impedirão de fazer o pior. Isso é um erro: devemos levar suas
intenções declaradas muito a sério.
Trump é um protecionista
autoproclamado, que diz que
tarifa é a palavra mais bonita da língua inglesa. Ele propôs
tarifas de 10% ou 20% contra todos os bens produzidos no exterior, por nações
amigas ou inimigas, e não precisa do aval do Congresso para fazê-lo.
Como um grande número de economistas apontou,
esse nível de protecionismo terá efeitos extremamente negativos sobre a
inflação, produtividade e emprego. Será extremamente prejudicial para as
cadeias de suprimentos, o que levará os produtores domésticos a solicitar
isenções. Isso então proporciona a oportunidade para altos níveis de corrupção
e favoritismo, à medida que as empresas correm para agradar o presidente.
Tarifas nesse nível também convidam a
retaliações igualmente massivas por outros países, criando uma situação em que
o comércio (e, portanto, a renda) colapsa. Talvez Trump recue diante disso; ele
também pode responder como a ex-presidente argentina Cristina
Kirchner, corrompendo a agência estatística que reporta as más
notícias econômicas.
Com relação à imigração, Trump não quer mais
simplesmente fechar a fronteira; ele quer
deportar o máximo possível dos 11 milhões de imigrantes em situação irregular
já no país. Essa é uma tarefa administrativa tão grande que
exigirá anos de investimento na infraestrutura necessária para realizá-la —
centros de detenção, agentes de controle de imigração, tribunais e assim por
diante.
Terá efeitos devastadores em vários setores
que dependem da mão de obra imigrante, particularmente construção civil e
agricultura. Também será enormemente desafiador em termos morais, à medida que
pais são separados de seus filhos americanos, e criaria o
cenário para um conflito civil, já que muitos dos imigrantes vivem em
jurisdições democratas que farão o que puderem para impedir que Trump consiga o
que quer.
Com relação ao Estado de Direito, Trump se
concentrou, durante a campanha, em buscar vingança pelas injustiças que
acredita ter sofrido nas mãos de seus adversários. Ele prometeu usar o sistema
de justiça para perseguir de Liz Cheney e Joe Biden ao
ex-presidente do Estado-Maior Mark Milley e Barack Obama. Ele quer silenciar
críticos da mídia retirando suas concessões ou impondo penalidades.
Se Trump terá o poder de fazer qualquer uma
dessas coisas é incerto: o sistema judicial foi uma das barreiras mais
resilientes aos seus excessos durante o primeiro mandato. Mas os republicanos
têm trabalhado consistentemente para inserir juízes trumpistas no sistema, como a
juíza Aileen Cannon na Flórida, que rejeitou o forte caso dos documentos
confidenciais contra Trump.
Algumas das mudanças mais importantes virão
na política externa e na natureza da ordem internacional. A Ucrânia é
de longe a maior perdedora; sua luta militar contra a Rússia estava
enfraquecendo mesmo antes da eleição, e Trump pode forçá-la a se render nos
termos da Rússia ao reter armas, como a Câmara Republicana fez por seis meses
no inverno passado.
Trump ameaçou reservadamente sair da Otan,
mas mesmo que não o faça, ele pode enfraquecer gravemente a aliança ao não
cumprir sua garantia de defesa mútua do Artigo 5. Não há líderes europeus que
possam substituir os Estados Unidos como líder da aliança, então sua futura
capacidade de enfrentar a Rússia e a China está
em grave perigo. Pelo contrário, a vitória de Trump inspirará outros populistas
europeus, como a Alternativa para a Alemanha e
a Reunião
Nacional na França.
Aliados e amigos dos EUA no Leste Asiático
não estão em posição melhor. Embora Trump tenha falado duramente sobre a China,
ele também admira muito Xi Jinping por
suas características autocráticas e pode estar disposto a fazer um acordo com
ele sobre Taiwan.
Trump parece avesso por natureza ao uso do poder militar e é facilmente
manipulado, mas uma exceção pode ser o Oriente Médio,
onde ele provavelmente apoiará completamente as guerras de Benjamin Netanyahu
contra o Hamas,
o Hezbollah e o Irã.
Há fortes razões para pensar que Trump será
muito mais eficaz em cumprir essa agenda do que foi durante seu primeiro
mandato. Ele e os republicanos reconheceram que a implementação de políticas
depende da equipe. Quando foi eleito pela primeira vez em 2016, ele não entrou
no cargo cercado por um grupo de assessores leais; em vez disso,
teve que contar com republicanos do establishment.
Em muitos casos, eles bloquearam ou
retardaram suas ordens. No final de seu mandato, ele emitiu uma ordem executiva
que retiraria todas as proteções de estabilidade dos servidores federais e
permitiria que ele demitisse qualquer burocrata que quisesse. Um renascimento
dessa medida está no cerne dos planos para um segundo mandato de Trump, e os
conservadores têm estado ocupados compilando listas de potenciais funcionários
cuja principal qualificação é a lealdade pessoal a Trump. É por isso que ele
tem mais chances de executar seus planos desta vez.
Antes da eleição, críticos, incluindo Kamala Harris,
acusaram Trump de ser um fascista. Isso foi equivocado na medida em que ele não
estava prestes a implementar um regime totalitário nos EUA. Em vez disso,
haveria uma decadência gradual das instituições liberais, assim como ocorreu
na Hungria após o
retorno de Viktor Orbán ao poder em 2010.
Essa decadência já começou, e Trump causou
danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e
transformou os EUA de uma
sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele
demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele
representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o
discurso político mais grosseiro e deu permissão para
expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a
maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um
presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020.
A amplitude da vitória republicana,
estendendo-se da Presidência ao Senado e provavelmente à Câmara dos
Representantes também, será interpretada como um forte mandato político
confirmando essas ideias e permitindo que Trump aja como quiser. Só podemos esperar
que algumas das barreiras institucionais restantes sigam de pé. Mas pode ser
que as coisas tenham de piorar muito antes de melhorarem.
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6 comentários:
O mundo respira aliviado com oTrump
O eixo autoritário China Rússia Irã Perceberam fim de linha
Na verdade Que estava em andamento era uma guerra contra os valores ocidentais e o mundo democrático cristão
O partido democrata americano estava fazendo serviço de desestabilização interna para facilitar a dominação externa de Rússia e China China
No fundo eram traidores da Pátria que o eleitor sobre identificar e dizer não
Esse complô Também se dá aqui no Brasil o PT desempenha o papel de partido que vai desestabilizar a nossa sociedade para facilitar a dominação principalmente chinesa que já está nos rodeando a tempo
Quando Gleisi Hoffman do PT e Lula visitam a China e elogiam partido comunista chinês está dando mostra do que que eles acham que é ideal para a política brasileira
Eles perderam graças a Deus
Nada será como antes
A conferir.
😏😏😏
Muito bom! Repito sua frase: "neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas."
A canonização do Mercado é seguidamente criticada por colunas de Gonzaga Belluzzo, inclusive aqui neste blog.
"Trump ... é uma grande ameaça ao próprio liberalismo clássico [e à democracia dos EUA]. A verdadeira questão não é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir o que ameaça." Exatamente!
A conclusão:
"Essa decadência já começou, e Trump causou danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que o governo representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o discurso político mais grosseiro e deu permissão para expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020." - quando na verdade o golpista foi Donald Trump, que incitou a invasão ao Capitólio, da mesma forma como Bolsonaro incitou por meses as manifestações bolsonaristas pedindo golpe militar no Brasil.
Fukuyama acertou em cheio.
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