No mesmo artigo, fiz uma terceira consideração, mais controversa – a de que os resultados eleitorais pedem revisão de crenças correntes a respeito dos principais campos da geografia política do país e suas respectivas possibilidades de êxito em várias arenas de competição, até 2026. Sendo mais especifico: pedem reformular, ou abandonar, a noção de “centrão”, compreender em profundidade a crise da esquerda e centro-esquerda (que está longe de ser só crise eleitoral) e avaliar com realismo a força da direita radical e suas versões extremistas. Serão os temas deste e de mais dois artigos. Hoje é visita paciente ao centrismo, por onde se costuma passar batido, usando jargões ilusórios ou irônicos.
Em três eleições municipais (2016, 2020 e
2024) consolidaram espaço junto ao eleitorado uma direita e uma centro-direita
tradicionalmente patrimonialistas no seu agir político; reformistas (mas não de
modo homogêneo) nas pautas econômicas; inclinadas (também não homogeneamente)
ao populismo, em pautas sociais; tendentes a surfar em ondas de líderes
carismáticos na arena plebiscitária, a serem pragmáticas nas suas próprias
estratégias eleitorais autônomas em eleições legislativas e bastante
conservadoras na dita pauta de costumes. Os traços patrimonialistas de sua
conduta geram críticas e desprezo em quem se preocupa com a qualidade da
política democrática. Ao mesmo tempo essas forças políticas –
caracteristicamente o PP e o Republicanos, em parte, o União Brasil e até
partes do PL) – têm sido um colchão amortecedor de tentativas da
extrema-direita de desestabilizar o sistema político.
Ao lado delas, mostra sua relevância
eleitoral nos municípios um campo de centro cujas expressões são hoje o MDB e o
PSD. Iguala-se à centro-direita em porte e em vários aspectos (patrimonialismo
incluído, tradição política contra a qual, aliás, nenhum partido está ou pode
estar vacinado), mas diferencia-se em outros: 1. É menos maleável a um
fundamentalismo “neo-liberal" em economia, tendo alguma conexão com visões
desenvolvimentistas e, no caso do MDB, até social democratas; 2. Não tem
sintonia com as pautas conservadoras em costumes, assumindo, em geral, posição
neutra e mais secular, quanto à relação entre religião e política; 3. Faz uma
defesa mais normativa e não apenas pragmática do sistema político e da
democracia representativa. Por esses três motivos esse centro não está na mera
condição de um livre atirador e pode celebrar alianças menos fugazes com uma
centro-esquerda que estiver disposta a isso. Os êxitos eleitorais do PSD e do
MDB - caso os levem à cooperação mútua, mais do que à competição - podem
permitir a formação de um eixo, com chance de aliança com o União Brasil, um
partido mais programaticamente liberal que os demais da centro-direita. Se
demonstrar força, esse potencial eixo centrista poderá atrair para sua órbita
outros partidos, como PSDB e Cidadania, que parecem se encaminhar a uma
solteirice provisória, após o insucesso de sua federação.
Tento descrever aqui um centro pragmático,
uma centro-direita liberal e uma direita conservantista, todos organicamente
assentados no sistema partidário e no jogo da representação política, que é sua
fonte comum de reprodução. Mas esse assentamento está longe de sugerir que
sejam um campo coeso. As siglas que reúnem esse centro e essas direitas
moderadas deixaram de agir como livres atiradores atomizados, como faziam, à
exceção do PFL/DEM e do MDB, no tempo em que, no Congresso, tinha sentido falar
em alto e baixo clero. Cada sigla tornou-se mais partido do que era, no sentido
de ter ciência da necessidade de sua conexão com alguma espécie de “campo
político”.
No mercado político atual circulam bens
distintos dos que circulavam nos tempos de plena vigência do clientelismo, mas
é óbvia a afetação de todos esses partidos por cacoetes dessa gramática
política tradicional. Uso o termo clientelismo no sentido isento de conotação
moral que lhe deu Edson Nunes em Gramática política do Brasil, isto é, de
resistência ao universalismo de procedimentos (a gramática tendencial em
repúblicas democráticas), mas também de recurso defensivo da representação
política, no Legislativo e nos partidos, contra sua anulação pelo insulamento
burocrático e pelo corporativismo, gramáticas típicas de modernizações “por
cima”, manejadas pelo Executivo, não importa a orientação política do governo
de plantão. Falamos, ainda, de cargos públicos como moeda de troca mais ou
menos generalizada – tal como a troca típica do clientelismo - mas há perfis
legais específicos que seus ocupantes devem atender. Falamos cada vez mais de
negociação em torno de públicos-alvo de políticas públicas e de emendas
parlamentares. Nesse contexto sócio-político modernizado e institucional, segue
relevante e sinuosa a incidência de equivalentes do clientelismo em todos os
quadrantes ideológicos, seja na modalidade do fisiologismo mais tosco da
pequena política de oportunidades, seja na de um patrimonialismo mais enraizado
na sociedade e em estruturas administrativas do Estado.
Nesses partidos, que um hábito preguiçoso
apelida de centrão, também são visíveis forças centrífugas que atuam para
liquefazê-los. Esse fator inibidor do processo de institucionalização dos
partidos está hoje menos ligado ao regionalismo, como cultura política
tradicional e mais à dinâmica federativa do sistema eleitoral, de cujos
pluralismo e representatividade forças centrífugas são implicação e
contrapartida. À parte tais aspectos que contribuem para um nivelamento
relativo dos partidos, insinuam-se entre seus respectivos órgãos e quadros
dirigentes diferenças de conduta estratégica e de métodos de comando interno.
Elas pedem pesquisa meticulosa, de sentido mais analítico do que normativo.
Cada núcleo dirigente desses partidos de direita, de centro-direita e de centro
lida, naturalmente, com circunstâncias peculiares, conjunturais ou não. Caso à
parte é o do PL, legenda de aluguel da direita radical e da extrema-direita,
tornado ambiente de incertezas que serão comentadas no último artigo desta
série, dedicado a esse conjunto específico de forças. No de hoje ocupo-me de
partidos que estão fora da polarização plebiscitária característica da arena
eleitoral da presidência da República. Embora ali atuem elementos
bolsonaristas, não têm peso como seus correspondentes no PL.
No PP não é de pouca relevância, para os
movimentos de Ciro Nogueira e outros dirigentes, a contingência de ser o
partido do poderoso presidente da Câmara, o que o torna uma legenda de
consistência mais gasosa e vulnerável a recortes transversais. Já os dirigentes
do Republicanos não podem deixar de considerar, além do forte viés religioso
infiltrado em sua bancada parlamentar, a presença, entre seus quadros, do
governador de São Paulo, um presidenciável em potencial que começa a demarcar
terreno especifico próprio entre o empuxo bolsonarista e o legado tucano. No
União Brasil, além de haver também aspirações presidenciais pontuais, a
dependência de trajetória é a complexa gestão de dois legados distintos ali
fundidos, o do PSL e o do DEM. À tentativa de conciliá-los, que transcorreu sem
muito êxito por quase dois anos, parece suceder agora novo tipo de afirmação.
Se não for bloqueado pelo personalismo com a ascensão de Davi Alcolumbre à
presidência do Senado, o presidente do partido deve conduzir, com aparente
apoio de núcleos estaduais fortes, um movimento que guarda semelhança com a
atuação diferenciada dos núcleos dirigentes centristas do PSD e do MDB.
Nesses dois hoje principais partidos de
centro, suas direções, ao contrário do que se dá, por exemplo, no PSDB e no
Cidadania, têm tido condição de fixar, contra forças centrífugas, linhas de
conduta nacionais. O processo é mais lento no MDB, pela sua proverbial
fragmentação regional, a qual, contudo, vem sendo mitigada desde a campanha de
Simone Tebet, bancada até o fim pelo empoderamento institucional que o fundo
partidário proporcionou à direção partidária, presidida pelo deputado Baleia
Rossi. Já no PSD, o processo de institucionalização, montado sobre o mesmo
fundamento empoderador, já ganhou mais asas. Gilberto Kassab, além de mover-se
com autonomia no jogo político miúdo do Legislativo e de arranjos
governamentais antípodas, em Brasília e São Paulo, incursiona com crescente
fluência e desenvoltura, quase como um Tancredo contemporâneo, sobre o chão em
que pisam atores de grande política, dentre os quais por vezes desponta, como
presidente do Senado, seu correligionário Rodrigo Pacheco. Kassab e Baleia são
exemplares de uma linhagem nova de dirigentes partidários, filha de reformas
incrementais do sistema eleitoral e do financiamento público de campanhas. A
condição nova desses atores é a detenção de recursos de poder que os tornam
capazes de influir, simultaneamente e com êxito, sobre bancadas do partido e
sobre seus ministros no governo.
Nada disso quer dizer que elos sistêmicos
mais sólidos impliquem em que exista, entre esse novo/velho centro e as
direitas moderadas um vínculo orgânico que os leve necessariamente a uma
aliança na próxima eleição presidencial. Difícil que formem uma frente única e
lancem uma candidatura sua. Mais possível é que esses campos se repartam, nessa
disputa, por pressão do factóide da polarização esquerda/direita, que busca
anular um centro moderador para ocupar seu lugar e manter a competição
presidencial insulada em relação a pressões centristas advindas dos resultados
das eleições municipais.
Deflagra-se, no momento, com a injeção de
oxigênio oferecida a Lyra para consagrar seu escolhido à sucessão na Câmara, o
primeiro ato de uma operação similar à que se deu, entre 2020 e 2022, para
refratar a tendência ao centro, indicada como caminho pelo resultado de
eleições municipais então realizadas. Ali os polos da esquerda e da direita
retroalimentaram-se atrás das cortinas, durante o entreato, quando as várias
facções fabricaram, na contramão das urnas de 2020, o cardápio insosso e
fumegante de 2022. A recuperação da elegibilidade de Lula deu à esquerda o
atalho plebiscitário para saltar por cima dos seus próprios escombros
eleitorais e à extrema-direita a senha para converter sua ação roedora de
toupeira das instituições em conspiração aberta por um autogolpe.
Não estará alucinado quem notar, na súbita
convergência do PL e do PT em torno do nome de Hugo Mota para a sucessão de
Artur Lira, a dissipação antecipada de um potencial desvio de foco da sucessão
congressual tendo como eixos o PSD, o MDB e o UB. O movimento convergente e
rápido dos lados opostos que o centro e a direita moderada superaram nas
eleições de 2024 bloqueia na raiz a hipótese de uma articulação centrista
mundana vir a acumular força no Legislativo para pisar, mais adiante, no solo
sagrado da sucessão presidencial. Conjurado o perigo, abre-se caminho cordial à
recuperação da elegibilidade de Bolsonaro. Embora falte combinar com a Justiça
e o conjunto da direita radical, esse cenário é virtualmente mais provável,
após a vitória de Trump, pela pressão por anistia que ela pode acarretar. Isso
pode permitir à oposição bolsonarista saltar por cima dos escombros a que a
orfandade lhe condenaria e provocar, no lado oposto, a ressureição, em 2026, do
script polarizado da campanha de 2022, que as eleições de 2024 rejeitaram. O
risco dessa vez é maior para a esquerda, é o que mostram as atuais tendências
eleitorais. Mas quem duvida de que o PT prefira, como em 2018, o comando da
futura oposição em vez de uma dieta de protagonismo, apoiando uma candidatura de
outro campo?
Também não estará delirando quem vir o centro
e as direitas moderadas que as urnas vitaminaram assistirem passivamente à
preparação de um cardápio dietético para o seu eleitor. Participação nas mesas
da Câmara e Senado, execução expedita de emendas, paz em redutos eleitorais e
sobra de mais recursos de fundos partidários para campanhas ao Legislativo são
argumentos fortes de dissuasão de incursões amadoras à arena plebiscitária. O
próprio Kassab adiantou a hipótese de que 2026 talvez ainda não seja a hora. Se
quem teria mais força para ter pressa não a tem, quem a terá? A fleugma
pragmática desse experiente centro político pode passar mais quatro anos lendo
fábulas sobre a sua condição de centrão, sobre a iminência de uma tragédia
fascista e sobre a missão salvadora de Lula.
Mas essa análise que se quer realista não
pode terminar de descrever seu arco simplesmente aportando no primeiro cais. A
política perderia o sentido se não permitisse cogitar cursos de ação
alternativos. O governo Lula erra quando, ao atuar na pequena política, não
discerne com clareza os dois tipos de “centro”. Pois deixa de explorar uma
hipótese possível de fazê-lo acessar melhor a realidade nacional.
Um eventual eixo MDB / PSD, reforçado pelo
União Brasil e outros eventuais partidos, poderia ter estímulo do Executivo
para contrabalançar a influência das direitas radical e conservantista no
Congresso, ancoradas no poder pessoal e no jogo de morde-sopra do atual
presidente da Câmara. Mais de uma vez já se argumentou, em vão, que o bloco
parlamentar ali formado, por aqueles dois partidos de centro, no início deste
ano legislativo, tem peso numérico equivalente ao do condomínio suprapartidário
controlado por Lyra, que só é invencível quando vitaminado por bancadas de
centro-esquerda, que se dirigem a esse porto por inspiração do governo ou, ao
menos, pelo seu nada-a-opor.
Surfar na desqualificação do conjunto como
“centrão” pode ser taticamente interessante para desarmar bombas legislativas
de curto pavio e também para, usando recursos de poder ainda disponíveis,
forçar e sustentar a polarização de um amontoado de agentes contra a direita
radical, na disputa plebiscitária presidencial. Mas traz sérios inconvenientes
à qualidade da governança política (pelo rebaixamento da consistência
programática da coalizão governante) e problemas ao desempenho da esquerda nos
municípios. Governar com forças muito distantes no espectro político não evita,
até agrava a solidão, em eleições municipais. A performance nesse plano costuma
repercutir em eleições ao legislativo nacional, pelos antigos e por novos laços
eleitorais entre prefeitos e parlamentares. É crescente problema para a
esquerda e centro-esquerda, pois, no contexto, reforça-se, em paralelo, o
protagonismo do Congresso.
Noves fora fatores conjunturais agravados por
equívocos táticos, a proeminente derrota da esquerda nas eleições de outubro
denuncia uma falta de horizonte político, por defasagem programática. Essa
defasagem de cunho cognitivo, por sua vez, é implicação direta de uma
obsolescência dos paradigmas interpretativos do Brasil e do mundo, aos quais
esse campo se apega. Bem como de crenças normativas anacrônicas, que subsistem,
ébrias, ao mergulho sem peias dessa esquerda empírica no terreno minado da
pequena política. O pântano onde a atitude política dessa esquerda encontra-se
atolada será o assunto do próximo artigo, ao qual sucederá outro, sobre a
direita radical e a extrema-direita, o último de quatro comentários sobre a
geografia política brasileira após as eleições municipais de 2024.
*Cientista político e professor da UFBa.
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