terça-feira, 31 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

O Globo

Democracia era o eixo da diplomacia de Jimmy Carter

Ele foi o presidente americano que mais contribuiu para derrubar a ditadura militar brasileira

Fora do Brasil, é provável que Jimmy Carter seja lembrado como artífice dos acordos históricos de Camp David, que resultaram na paz entre Israel e Egito, ou pelo fracasso de sua tentativa de reeleição diante da avalanche que Ronald Reagan representou em 1980 para um país consumido pela inflação e pela paralisia econômica. Aqui no Brasil, seu nome estará sempre associado à defesa da democracia. Carter, que morreu nesta semana aos 100 anos, foi o presidente dos Estados Unidos mais perturbador para a ditadura militar brasileira. Sua ascensão ao poder acabou com a vista grossa que a Casa Branca fazia para os desmandos dos generais no Cone Sul e representou uma guinada da política externa americana na direção da democracia e dos direitos humanos.

Carter mostrou a que vinha já na campanha. Numa entrevista em 1976, disse que o apoio dos Estados Unidos ao regime militar brasileiro era “um tapa na cara do povo americano”. Em debate eleitoral, lembrou que os republicanos haviam ajudado a derrubar Salvador Allende e a sustentar Augusto Pinochet no Chile poucos anos antes. Uma vez no poder, cortou a ajuda financeira a países onde havia tortura. No primeiro ano de mandato, enviou ao Brasil a mulher, Rosalynn. Ela deixou o presidente Ernesto Geisel perplexo ao apresentar uma lista de perseguidos políticos. Antes de partir, convidou integrantes da oposição para um jantar, prestigiou a imprensa e conversou com missionários americanos sobre as condições nas prisões. Inconformado com a política de direitos humanos e com a oposição americana ao tratado nuclear entre Brasil e Alemanha, Geisel encerrou um acordo bilateral de cooperação militar. O discurso de Carter não era mera retórica.

Quando veio ao Brasil no ano seguinte, na primeira visita de um presidente americano em 18 anos, encontrou representantes da oposição ao regime militar, como o presidente da OAB, Raymundo Faoro, e o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Convidou Arns para acompanhá-lo no carro até o aeroporto no Rio. A mágoa de Geisel durou até o fim da vida.

Por anos, prevaleceu a narrativa segundo a qual a política de Carter de criar atrito com o governo militar foi contraproducente para a abertura. Mas documentos secretos à época hoje abertos para consulta pública revelam uma realidade diferente. “Carter chacoalhou o regime, pondo Geisel na defensiva e fortalecendo a oposição à ditadura”, diz Matias Spektor, professor de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV).

É certo que ele não manteve coerência absoluta na defesa dos direitos humanos e da democracia — na disputa com os soviéticos, prestou ajuda ao governo golpista de El Salvador que lutava contra uma insurgência apoiada por Cuba, apesar do histórico terrível de repetidos crimes contra civis. Mesmo assim, tornou ambos os temas prioridades da política externa americana, quebrando o padrão adotado anteriormente por seus antecessores da Guerra Fria. Prova de que sua influência é duradoura foi a posição determinada dos Estados Unidos — tanto no Congresso quanto no Executivo — contra a tentativa de golpe militar no Brasil em 2022 e contra a fraude eleitoral cometida pelo ditador Nicolás Maduro na Venezuela. Ao contrário do que ocorria no passado, desde Carter os americanos passaram a repelir o golpismo no continente.

Anvisa faz bem ao restringir acesso de consumidores aos ‘chips da beleza’

O Globo

Vendidos com a promessa de tornar os compradores mais belos e mais fortes, eles trazem riscos graves à saúde

Foi acertada a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de conter o abuso dos implantes hormonais manipulados, conhecidos como “chips da beleza”. Apesar de indicados por profissionais de saúde para tratamentos específicos, eles passaram a ser usados indiscriminadamente, para fins estéticos e de desempenho físico. Produzidos em farmácias de manipulação e inseridos sob a pele, misturam diversos hormônios e substâncias. De acordo com a Anvisa, além de não haver comprovação de eficácia e segurança para uso estético, há risco de efeitos adversos graves.

Associações médicas já pediam o enquadramento dos “chips da beleza”, diante da avalanche de efeitos colaterais vistos com frequência nos consultórios. Entre os principais riscos estão derrame, arritmia, infarto, trombose, hipertensão, colesterol, crescimento excessivo de pelos, queda de cabelo, insônia e agitação. Em carta enviada à Anvisa antes da restrição, entidades médicas ressaltaram que os implantes hormonais são divulgados livremente nas redes sociais, muitas vezes por celebridades, sem qualquer evidência científica.

Apesar de bem-intencionada, a Anvisa exagerou no rigor de sua primeira decisão, anunciada em outubro, quando proibiu a manipulação, venda, propaganda e uso de todo e qualquer implante hormonal manipulado. Diante da ponderação das entidades médicas, em novembro republicou a decisão, abrindo espaço ao uso médico. Foram liberados os implantes para tratamentos de reposição hormonal e anticoncepcionais. Continuaram vetados aqueles à base de esteroides anabolizantes ou hormônios androgênicos com fins estéticos ou para melhorar o desempenho esportivo. A propaganda permanece proibida em qualquer caso.

As regras para prescrição e venda se tornaram mais rígidas. O médico que recomendar o implante terá de inserir na receita o código da condição clínica tratada. Será obrigatória a assinatura de um Termo de Responsabilidade por médico, paciente e responsável pela farmácia de manipulação. Nas regras, de acordo com certas interpretações, a Anvisa tornou as farmácias de manipulação corresponsáveis “em casos de má prescrição ou uso inadequado”.

Procedimentos estéticos disseminados nas redes sociais sem nenhum cuidado podem ser sedutores. À primeira vista, parecem a fórmula ideal para adquirir corpos atraentes, ganhar massa muscular e melhorar o desempenho. Mas essa é apenas parte da história. Os riscos são graves — e imprevisíveis. Superam qualquer benefício que o procedimento poderia proporcionar. Qualquer um deve ter liberdade para fazer suas escolhas, mas é obrigação do Estado zelar pela saúde de todos. Isso inclui alertar sobre os riscos. As novas normas da Anvisa poderão evitar que os desavisados caiam no conto do “chip da beleza”.

Falta de Orçamento espelha incerteza fiscal em 2025

Folha de S. Paulo

Ano começará sem que se saibam impactos dos juros e do pífio pacote de corte de gastos; Lula perdeu margem de protelação

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciará mais um ano sem Orçamento aprovado pelo Congresso, o que é sintoma e agravante da má gestão e das incertezas que hoje cercam as finanças públicas.

O atraso reflete tanto a demora do Executivo em anunciar seu prometido pacote de contenção de gastos —que se mostrou frustrante e acelerou a alta do dólar e dos juros— como a sanha de deputados e senadores para abocanhar mais recursos públicos por meio de suas emendas.

Enquanto não fecharam acordo com o Planalto para a liberação do pagamento das emendas, os parlamentares paralisaram as votações das medidas fiscais, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e do Orçamento.

O pacote, já tímido, foi afrouxado, não se sabe ao certo o quanto. A Fazenda, que não tem primado pela precisão de suas estimativas, calculou uma perda de R$ 2,1 bilhões, de R$ 71,9 bilhões para R$ 69,8 bilhões, na economia esperada neste ano e no próximo. Já entre analistas de mercado, a desidratação projetada ficou entre R$ 8 bilhões e R$ 20 bilhões.

A LDO —que, como o nome indica, fixa normas para a elaboração e a execução do Orçamento, incluindo a meta para o saldo das contas do Tesouro Nacional— só foi aprovada pelo Congresso em 18 de dezembro, enquanto a legislação prevê que isso deve ocorrer no primeiro semestre legislativo.

Foi com a mudança da meta para 2025, em abril, que a administração petista despertou o processo de desconfiança crescente quanto a seu compromisso com o programa de ajuste fiscal. Em vez de um superávit primário (sem contar despesas com juros) de 0,5% do PIB, cerca de R$ 60 bilhões, o governo passou a mirar resultado zero, sendo admitido um déficit de até R$ 30,9 bilhões.

A LDO incorporou ainda uma regra que gera críticas por potencialmente permitir gastos de estatais dependentes do Tesouro fora dos limites orçamentários, além de dezenas de dispositivos votados de última hora pelos congressistas, cujos impactos ainda não são sabidos ao certo.

Quanto ao Orçamento, o relator do projeto, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), já adiantou à Folha as dificuldades que antevê para a votação no início de 2025, dado o conflito entre os Poderes provocado pelas decisões do Supremo Tribunal Federal contra o pagamento de emendas.

Apresentada no final de agosto, a peça logo despertou ceticismo em relação à grande elevação prevista das receitas. Novas dúvidas surgem agora com o choque de juros promovido pelo Banco Central, cujo objetivo é conter a inflação esfriando a economia —o que impacta a arrecadação.

O governo Lula passou quase todo o ano de 2024 semeando expectativas de providências mais ambiciosas para conter seu déficit e a escalada da dívida pública. Com o dólar acima de R$ 6, a margem para protelações se esgotou. É necessário dirimir com urgência as múltiplas dúvidas quanto às contas de 2025.

Tarifa de ônibus precisa ser fixada com realismo

Folha de S. Paulo

Ao protelar reajuste em SP, Nunes expandiu subsídios; deve-se estimular concorrência e focar em estratos de baixa renda

Elevar o preço da passagem de ônibus pode ser mexer num vespeiro —recordem-se os protestos pelo país em 2013 que tiveram como estopim uma alta de R$ 0,20 em São Paulo. Mas, mesmo impopulares, reajustes são necessários para manter a sustentabilidade do sistema e a ordem nas contas públicas.

O prefeito da capital paulista, Ricardo Nunes (MDB), anunciou que a partir do dia 6 de janeiro a tarifa passará de R$ 4,40 para R$ 5 —alta de 13,6%. Desde a ultima alteração, em 2020, quando subiu de R$ 4,30 para o valor atual, a inflação foi de 32%.

As críticas vieram. A Justiça paulista acatou parte de uma ação de parlamentares do PSOL e pediu explicações à prefeitura; representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de Transporte e Trânsito divulgaram carta contra a mudança; futuros vereadores acionaram o Judiciário para questionar a reunião do CMTT.

Por óbvio, o tema está aberto a debates, mas é preciso ter em mente que o congelamento da tarifa —assim como a gratuidade aos domingos e para alguns estratos da população— implica alto gasto de verbas públicas, que poderiam ser direcionadas a setores que gerariam efeitos reais na redução de desigualdades, como saúde e educação.

Assim, o reajuste é correto e até tardio. Ao protelá-lo, Nunes fez com que os subsídios para as empresas de transporte se expandissem de modo insustentável, impactando o Orçamento.

As despesas nessa rubrica saltaram de R$ 3,3 bilhões em 2021 para R$ 6,7 bilhões neste ano. O valor, bancado pelo contribuinte, equivale a 58,7% do custo total do sistema neste ano (11,4 bilhões). Os restantes R$ 4,6 bilhões, pagos pelos passageiros, constituem a menor cifra desde 2021.

O fato de a prefeitura ter gastado 19,6% acima do previsto para 2024 (5,6 bilhões) revela a fragilidade da política de subsídios quando ela se assenta mais em demagogia do que na realidade.

É preciso que as tarifas sejam reajustas do modo periódico, como ocorre com preços de bilhetes de trem e metrô, e que subsídios e gratuidades sejam direcionados à população de baixa renda.

Ademais, para aumentar a eficiência do sistema, com novas tecnologias e redesenho de linhas, e o número de passageiros, deve-se estimular a concorrência. Para isso, não pode haver excesso de exigências para que novas e pequenas empresas participem dos processos de licitação.

Trata-se de zelar pelo uso racional do dinheiro do contribuinte para alcançar os melhores resultados possíveis, o que é dever de legisladores e gestores.

Para o governo, 1 mais 1 dá 3

O Estado de S. Paulo

Depois de atribuir a má recepção do pacote fiscal a ruídos de comunicação, Haddad reconhece haver ‘inconsistência’ na promessa de isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que a reforma tributária sobre a renda será enviada ao Congresso em 2025. Segundo ele, a intenção do governo era remetê-la ao Legislativo ainda neste ano, mas a equipe econômica percebeu que o modelo apresentou uma “inconsistência” que deverá ser corrigida pela Receita Federal antes de remeter o projeto de lei ao Legislativo.

O ministro não deu muitos detalhes sobre essa “inconsistência”, mas aparentemente ela não tem nada de trivial. O imbróglio se deve à promessa de isentar do Imposto de Renda (IR) os trabalhadores que ganham até R$ 5 mil mensais. Essa perda deveria ser compensada pela taxação mínima de 10% para aqueles que recebem mais de R$ 50 mil por mês, alguns como pessoas físicas e muitos por meio de pessoas jurídicas.

Ao rodar o modelo considerando essas mudanças, a conta não fechou. E, agora, caberá aos auditores calibrar o sistema para manter a carga tributária neutra, de forma a garantir que o somatório da arrecadação dos impostos que incidem sobre pessoas físicas e jurídicas se mantenha estável após a reforma.

De fato, não parecia crível abrir mão de uma arrecadação líquida e certa, como a que incide sobre os salários e é retida na fonte, para compensá-la por meio da taxação de grupos privilegiados que conseguem reduzir o pagamento de impostos via planejamento tributário. Em ordem de grandeza, enquanto a primeira beneficiaria milhões de pessoas, a segunda alcançaria milhares.

Ainda que a arrecadação de uma recompusesse a perda da outra, o correto seria apresentar notas técnicas que mostrassem como o governo chegou a esses números. Afinal, trata-se de um reajuste e tanto considerando a atual faixa de isenção de IR, de até R$ 2.824,00 mensais. Ao não apresentar seus cálculos, o governo deu a deixa para que outras instituições fizessem suas próprias contas.

Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Sindical), a isenção de IR para ganhos de até R$ 5 mil atingiria 9,6 milhões de pessoas e geraria uma perda de arrecadação anual de R$ 51 bilhões, ampliando o universo de contribuintes isentos para 26 milhões.

É inegável que a isenção de IR para quem recebe até R$ 5 mil foi a grande responsável pela péssima repercussão que o pacote fiscal teve no mercado. E o fato de que o anúncio foi feito em cadeia nacional de rádio e TV por ninguém menos que o próprio ministro da Fazenda só piorou a situação.

Haddad, no entanto, insistia na tese de que o que havia eram apenas “ruídos”. Era como se o mercado tivesse feito uma leitura errada do pacote, e bastaria que o governo mostrasse esse equívoco para que o dólar e a curva de juros futuros recuassem e a confiança fosse recuperada.

A verdade é que os investidores rapidamente perceberam que o que havia ali não era um problema de comunicação, mas um problema de matemática. O ministro, por sua vez, só reconheceu a “inconsistência” da proposta depois que o pacote já havia sido aprovado e esvaziado no Congresso.

Fato é que as incertezas seguem contaminando as expectativas, com o dólar acima de R$ 6,00 e os juros futuros a mais de 15% para vários vencimentos. Afinal, tudo que o Executivo conseguiu foi reduzir o ritmo de crescimento de algumas despesas, e não o corte estrutural para preservar o arcabouço fiscal, que sinalizou ao mercado que faria entre o primeiro e o segundo turnos das eleições municipais.

Se em 2023 o ministro encerrou o ano com a aprovação de praticamente todas as medidas de sua agenda econômica, 2024 termina com o gosto amargo das promessas descumpridas. Mas em vez de buscar ativamente o equilíbrio fiscal, a única forma de reconquistar a confiança do mercado, o governo terceiriza responsabilidades e usa a máquina pública para investigar um suposto conluio do mercado contra sua gestão.

Enquanto celebra o crescimento do PIB e a queda do desemprego, o governo finge não ver a inflação fora da meta. Mais útil seria compreender que os riscos que o mercado enxerga no futuro são exatamente os mesmos que o Executivo minimiza no presente.

O avanço das facções na Amazônia

O Estado de S. Paulo

Crime organizado se alastra em alta velocidade e, diante da tibieza do Estado, amplia as fronteiras do tráfico de drogas, diversifica os negócios ilícitos e vira o grande empregador da região

As facções criminosas avançam sobre municípios da Amazônia Legal em alta velocidade. Hoje, nada menos que um terço das cidades da região convive com o crime organizado, segundo o mais recente relatório Cartografias da Violência na Amazônia, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Mãe Crioula. Entre 2022 e 2023, saltou de 178 para 260 o número de municípios em que esses bandos atuam.

São grupos nascidos principalmente no Sudeste, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), mas que, diante da tibieza do Estado no combate à violência, fincam suas raízes na região ao passo que expandem as fronteiras de seus negócios ilícitos. Toda a Amazônia Legal, que engloba 9 Estados, soma 772 cidades.

Enquanto as facções alcançam mais municípios, o poder do crime se concentra. O número de organizações caiu de 22 para 19. O CV domina 130 municípios e o PCC, 28. E isso pode ajudar a explicar até mesmo a queda de homicídios. Ante o primeiro relatório, com dados de 2021, o número de mortes violentas caiu 6,2% em 2023. São 32,3 óbitos por 100 mil habitantes, mas ainda 41,5% acima da média nacional. Nas cidades onde há duas ou mais facções, predominam os conflitos e impera o terror.

O ritmo da expansão do crime organizado na Amazônia Legal é “surpreendente”, na avaliação dos autores. Mas não é difícil entender esse avanço. A demanda mundial por cocaína cresce, o que implica aumento da oferta. A região faz fronteira com países produtores, como Bolívia, Colômbia e Peru. E, com o foco do PCC no escoamento da cocaína paraguaia pelo Porto de Santos para o mercado europeu, uma ampla frente logística se abre ao norte para seu principal concorrente, o CV.

A força do narcotráfico é uma novidade da última década na vida do povo amazônico. Mas desde a segunda metade do século 20 o crime impõe suas regras na região, com grileiros, garimpeiros e madeireiros como os grandes protagonistas das práticas ilícitas.

São décadas de omissão do poder público, o que alimenta disputas agrárias que destroem a floresta e amedrontam a população. É isso o que explica, por exemplo, o registro de mais de 20 mil propriedades ilegais que se espalham por unidades de conservação, terras públicas sem destinação e terras indígenas, nas quais a floresta dá lugar a monoculturas e pastagens para o gado.

Todos esses crimes têm como pano de fundo disputas fundiárias. E o resultado de anos de ausência estatal é a sobreposição de ilícitos. Hoje, organizações criminosas se associam aos veteranos devastadores. Versadas no crime, as facções passaram a atuar no comércio em áreas de garimpo, na exploração ilegal de ouro, na grilagem, no contrabando de madeira e minérios e até mesmo no agronegócio para lavar dinheiro. Não à toa, esse quadro leva o presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, a afirmar que o crime é o maior empregador na Amazônia.

A solução para tantos problemas passa pela mobilização de municípios, Estados e União. E, para isso, o FBSP lista uma série de medidas. Entre elas estão o aperfeiçoamento do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para que se reduzam as invasões de terras protegidas; a qualificação da investigação criminal e de mecanismos de combate à lavagem de dinheiro com o fortalecimento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf); e a articulação entre as instituições de segurança pública estaduais e federais, órgãos de controle ambiental e da Justiça.

A tarefa que se impõe às autoridades é diretamente proporcional à vastidão do território amazônico e, por isso mesmo, exige menos barulho e mais inteligência. Esse trabalho demanda a união de esforços para a implementação de políticas públicas que estimulem a bioeconomia, impulsionem pesquisas científicas na região e ofereçam alternativas legais de trabalho e renda à população local.

Sobram caminhos para o enfrentamento do crime. O que não pode faltar é vontade política para estrangulá-lo, sobretudo na região com a maior biodiversidade do planeta e crucial para o futuro da humanidade. A responsabilidade do Brasil é imensa.

Google, o novo ‘inimigo do povo’

O Estado de S. Paulo

Erro do buscador na cotação do dólar é tratado pelo governo como conspiração contra o Brasil

No dia 25 de dezembro passado, quem pesquisasse a cotação do dólar no Google obtinha como resposta o valor de R$ 6,35, nada menos que R$ 0,20 acima da cotação real. Tratava-se de algo sem muita relevância, a não ser para o circo das redes sociais, e o erro foi logo corrigido, mas o governo de Lula da Silva, empenhadíssimo em demonstrar que a moeda brasileira está sob ataque especulativo das forças ocultas do mercado, parece inclinado a tomar esse caso como prova de suas teorias da conspiração – e, de quebra, ainda pretende fustigar uma das principais Big Techs, empresas que, segundo Lula disse numa entrevista à TV Record em julho passado, ganham dinheiro “disseminando inverdades”.

A Advocacia-Geral da União (AGU) decidiu reunir subsídios para eventual atuação relacionada à informação incorreta e solicitou dados ao Banco Central (BC). De acordo com reportagem do Estadão/Broadcast, a intenção seria acionar a plataforma judicialmente.

Muitos fatores levaram à disparada do dólar. Mas nenhum deles pesou tanto quanto a timidez do pacote fiscal e a falta de empenho do Executivo em defendê-lo. O Palácio do Planalto, porém, decidiu recorrer à surrada tática lulopetista de inventar complôs de “inimigos do povo”, em vez de assumir a responsabilidade pela deterioração cambial, inflação fora da meta e trajetória de alta da dívida pública. Aos poucos, o governo vai construindo sua narrativa de vitimização.

Se há uma vítima, há um algoz, e esse algoz tem nome e sobrenome: “Faria Lima”. Como se fosse uma sociedade secreta que opera nas sombras para destruir o País, a “Faria Lima” inventada pelos petistas cria e dissemina desinformação por meio de seus cúmplices nas Big Techs.

O ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Paulo Pimenta, chegou a ir às redes sociais dizer que “a indústria das fake news está trabalhando mais uma vez contra o Brasil”, por causa de uma declaração falsamente atribuída a Gabriel Galípolo, futuro presidente do BC, de que consideraria “artificial” a alta do dólar. Galípolo desestimulou esse devaneio, mas a indústria petista de distorção da realidade para seus propósitos políticos é imparável. A investida da AGU parece fazer parte desse esforço.

O órgão enviou ofícios à Polícia Federal (PF) e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nos quais pediu a instauração de “procedimentos policial e administrativo” a fim de investigar fake news de redes sociais. Depois disso, voltou a artilharia contra o Google por causa da cotação do dólar. No despacho em que a Procuradoria-Geral da União registra a solicitação da AGU, lê-se que o assunto é “defesa do Estado e das instituições democráticas”. Nada menos.

É bastante improvável que toda essa patranha resulte em alguma coisa prática, mas sua utilidade já se tornou evidente: ajuda a alimentar a farsa segundo a qual o País está sob ataque e que, não fosse o complô dos desalmados operadores do mercado e seus sócios nas Big Techs contra Lula e o governo do PT, o Brasil estaria voando.

O que nos permite olhar adiante

Correio Braziliense

Concluímos 2024 com a convicção de que a mancha do golpismo está sendo removida — não sem o esperneio de seus adeptos e porta-vozes — por meio do necessário remédio: o devido processo legal

Quando se tenta enxergar além do horizonte deste 2025 que vem chegando, o que se percebe, a preços de hoje, é que tem tudo para ser um ano difícil na economia e que as relações entre o Palácio do Planalto e o Congresso prenunciam manterem-se em níveis pouco amistosos. Arthur Lira deixa a presidência da Câmara, mas isso não quer dizer que prescindirá da influência consolidada em dois mandatos à frente da Casa. Isso permite antever que as matérias relacionadas à estabilização das contas públicas continuarão enfrentando tramitações difíceis. Nesse jogo de influência, o deputado Hugo Motta — provável sucessor de Lira — tem dado indicações de que se alinhará àquele que ainda ocupa a cadeira mais elevada do plenário.

Mas isso faz parte do permanente cabo de guerra travado entre os poderes da República quando prevalece a democracia. O ser estranho neste cenário é o golpismo, a excitação de grupos radicais — militares e civis — que se acreditam virtuosos e únicos capazes de conduzir o Brasil ao paraíso bíblico que imaginam existir. Para eles, a lei tem sido implacável. E isso permite dizer que, nesta seara, o país fecha o ano em condições de olhar para frente com a cabeça erguida.

A corroborar isso, pesquisa de opinião divulgada em 18 de dezembro mostra que 52% dos brasileiros acreditam que se arquitetou, e foi levada adiante, uma tentativa de golpe de Estado em 2022. Eventos ocorridos antes, reforçados por discursos e gestos registrados para a posteridade, e provas coletadas depois, não dão margem a qualquer dúvida sobre a ruptura institucional que estava a caminho. Da parte dos personagens envolvidos na trama, jamais houve dubiedade sobre o que pretendiam.

Ainda que enxerguem violações a uma lei que não lhes serve, porque não os beneficia nem dá suporte aos seus atos, seus advogados não podem jamais negar que lhes é cerceada a defesa. Para eles, e para o restante da sociedade, o Judiciário permanece aberto a melhor argumentação dentro das balizas legais. Algo que não é possível acreditar que ocorreria caso o país vivesse uma exceção institucional.

Fechamos 2022 sob a tensão, e os indícios, de que se urdia um ataque frontal e definitivo à democracia. Encerramos 2023 sob a preocupação de que esta ameaça não esteja completamente dissipada. Mas concluímos 2024 com a convicção de que a mancha do golpismo está sendo removida — não sem o esperneio de seus adeptos e porta-vozes — por meio do necessário remédio: o devido processo legal.

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