terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Drummond em seu escritório - Míriam Leitão

O Globo

Drummond escreveu um diário por 34 anos, mas destruiu em grande parte. O que restou virou um livro de deliciosa leitura

O título acima tem ambiguidade intencional. É dele, de Drummond, o escritório. Mas pode ser seu, de quem lê “O observador no escritório”, com as anotações feitas pelo poeta em seu diário, durante 34 anos, livro que acaba de ser relançado. A obra traz relatos dos seus encontros com amigos poetas e escritores, e notas sobre a política brasileira em intensa convulsão no tempo. A leitura traz a sensação de estar ouvindo confidências do poeta, como se fosse um amigo que chegou para uma visita ou mandou uma mensagem.

Hoje é o último dia de 2024. No último dia de 1952, Drummond anotou: “Escusa fazer o balanço do ano. O tempo é contínuo, e a divisão em meses, convencional. Por que ter esperanças no ano próximo e desacreditar o que passou? Eu é que passei não ele. Fiz cinquent’anos. Perdi um irmão discreto e simples. Tive ímpetos e descaídas. Não me sinto habilitado a julgar a vida, nem a mim mesmo.”

Li o livro antes de ser impresso, porque a Editora Record me pediu um posfácio. Fiquei atemorizada, afinal o que se pode falar depois de Drummond? A leitura me acolheu de tal forma que a alonguei. Em época de muito trabalho e vivendo um tempo doloroso, o livro era o companheiro certo. São detalhes da vida do país, observações sobre poesia, encontros com os amigos, disputas políticas, o cotidiano do poeta escrito em breves notas que deixam ao interlocutor tempo para refletir. Releio agora o livro impresso, com o mesmo prazer. Neste fim de ano, em vez de falar das perspectivas do próximo, ou contar bastidores da mais recente crise da República, falo de Drummond.

O livro é o que sobrou da sua fúria perfeccionista. “O impulso de escrever para mim mesmo, em caráter autoconfessional, ditou os feixes de palavras que fui acumulando e que um dia…destruí. Mas a própria destruição tem caprichos. Do conjunto sacrificado sobraram algumas páginas.” Ele explica o motivo de conservá-las. “Animou-me a ingênua presunção de que possam dar ao leitor um reflexo do tempo vivido de 1943 a 1977, menos por mim do que pelas pessoas em volta, fazendo lembrar coisas literárias e políticas daquele Brasil sacudido por ventos contrários”.

O Brasil permanece sacudido por ventos contrários. Numa antecipação do tempo polarizado de hoje, ele narra um caso em que o poeta mineiro Paulo Mendes Campos, então com 21 anos, envia-lhe uma carta com críticas a um poema seu. “Compreendi e gostei”, escreve Drummond. Admite que desprezava os ataques do “lado de lá”, dos “conservadores e reacionários”. Mas valorizava as “restrições partidas do lado de cá, de gente amiga e independente” porque "alertam o espírito e impõem mais rigor”.

Mário de Andrade morreu de infarto aos 51 anos. Em 26 de fevereiro de 1944, dia do enterro, Drummond escreveu em seu diário. “Sua última carta para mim, datada de 11 deste mês, estava cheia de projetos de livros, além do projeto fundamental de viver o ano de 1945”. É inevitável pensar nos livros que Mário de Andrade ainda poderia ter escrito.

Drummond marca a passagem daquele tempo com olhar de cronista político. “1945. Outubro, 30 — Ontem, os generais trouxeram para as ruas suas metralhadoras e seus carros de assalto e mandaram dizer a Getúlio que desse o fora.” Depois de novos relatos sobre o evento, ele conclui. “Tudo isso veio pelo rádio e pelo telefone, a começar das 20h, e custou-me uma noite de sono. Notícias às vezes contraditórias, mas em conjunto definidoras: fim da era getuliana. O vento a levou.” Ventos a trariam de volta, mas importa saber o que fez o poeta após a noite em claro pela intensa política brasileira. “Pela manhã o melhor a fazer é acompanhar a filhinha ao banho de mar, porque lhe falta companhia.” Na eleição de 1950, que elegeu Getúlio, Drummond foi assessor de Cristiano Machado, o traído, e conta deliciosos bastidores.

Essa mistura da vida política e do cotidiano é que permite ao leitor construir sua intimidade com o poeta e os amigos dele, que até hoje marcam a vida nacional. De Drummond se pode dizer o que ele disse ao definir Portinari. “A arte é sua vida, toda a sua vida.”

Algumas notas atemporais do livro poderiam ser publicadas hoje. “E me vejo perplexo no entrechoque de tendências e grupos, todos querendo salvar o Brasil, não sabendo como, ou sabendo demais.” Outras ajudam a pensar além do trabalho. “Como se o tempo me desse folga para passatempos.”

Entro de férias amanhã. Feliz 2025.

 

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