Valor Econômico
Pais legam a filhos e parentes um suposto
direito de sucessão na política por meio dos muitos mecanismos que contaminam e
usurpam o protagonismo democrático do cidadão
Dos muitos subentendidos da estrutura do
Estado brasileiro e da decorrente política que o caracteriza é possível
destacar que o sujeito indireto do processo político não é aqui o cidadão. É
cada família dos poderosos. Herdados do Império, a República perfilhou nosso
familismo político e o oligarquismo interiorano e rural. Colocam nosso regime
anômalo num permanente limiar do atraso.
Pais legam a filhos e parentes um suposto
direito de sucessão na política através dos muitos mecanismos que entre nós
contaminam e usurpam o protagonismo democrático do cidadão. Muitos candidatos
são voz e vontade de parentelas, distribuídos por diferentes níveis da
organização política. O eleitorado formalmente moderno manipulado para a farsa
do poder do atraso.
Novos e emergentes protagonistas enfrentam de maneira desigual e desfavorável quem já está no poder, os que têm a seu favor o direito a recursos do Estado, que os demais não têm.
Uma das expressões da desigualdade de
direitos, num país em que a Constituição diz que todos são iguais perante a
lei, está no crescente apelo aos chamados nomes de urna nas eleições. Acobertam
a identidade e o nome civil de seu portador. A mentira identitária aparece no
desempenho circense de alguns membros do legislativo, que se fantasiam do que
querem fazer supor que são, em vez de trajar-se como o que são.
Assumem como normal a designação pelos
estigmas que os tornam seres excluídos e da exclusão social e política.
Parasitam a cidadania e os direitos do cidadão. Dos que chegam ao poder, como
infiltrados na ordem política, teatralizam e caricaturizam, no desempenho
melancólico, o que a política não é. Servem apenas para agregar votos na conta
de quem não foi diretamente votado.
Emblemática foi a eleição de Tiririca, nome
popular de uma planta daninha. Sua campanha veio com este esclarecimento
antipolítico e antidemocrático: “Vote em Tiririca, que pior não fica”. Foi
eleito porque no imaginário popular personificava a nulidade. Com sua votação,
Tiririca arrastou consigo para o poder vários fantasmas eleitorais. O
oportunismo elege mais do que o eleitorado.
Nas ascensões políticas da era
pós-ditatorial, lentamente gestados, os Bolsonaros são a mais radical
configuração dos novos protagonistas políticos de nossa pós-modernidade
antipolítica e antidemocrática, a do sujeito que subsume o que deveria ser a
figura jurídica do sujeito-cidadão.
Uma “firma política”, sob a configuração de
uma família normal, chegou ao poder dependurada no pescoço do pai de família.
Diferentemente do que já é a anomalia da dominação oligárquica na sucessão dos
mesmos, surge aí a dominação da simultaneidade dos mesmos, o poder da família
em penca.
O festejo em palácio pela aprovação, para o
STF, do nome de um pastor protestante com quem a primeira-dama de então se
identificava, um “irmão de fé”, mostra que tudo converge para um projeto de
poder que nada tem a ver com as instituições republicanas. Trata-se de uma
casta de gente que se concebe como dinastia e como dinastia atua, com base em
direitos de parentesco, de sucessão simultânea e de pertencimento vicário, seja
pelo casamento seja pelo compadrio simbólico.
Os documentos de denúncia contra Bolsonaro,
encaminhados pela PGR ao STF, mencionam que uma das vozes radicais no interior
do Palácio da Alvorada a favor do golpe de Estado foi justamente a da
primeira-dama.
Os envolvidos nessa ordem anômala agem com a
naturalidade de que o regime constitucional não é o da letra da lei, mas o de
sua interpretação com base nas brechas que vêm de um passado que a legitima.
Aquele Artigo 142 da Constituição, para
colocar o país sob tutela das Forças Armadas e dar sobrevida à ditadura,
disfarçou-a, na perspectiva do avesso ao lícito, com a intenção meramente
subjacente de conter e atenuar a abertura política e seus efeitos democráticos.
O STF interpretou o artigo, à luz do teor da Constituição, e desfez o
estamentalismo da interpretação golpista.
A República de 15 de novembro de 1889 fora
República para minorias que se julgam com privilégios estamentais, como os
militares. A República não era republicana, mas excludente e antidemocrática.
Excluiu mulheres, analfabetos, praças de pré, membros das instituições
monásticas. Os tutelados por outrem, os destituídos de vontade própria. O povo
brasileiro considerado como um povo de menores de idade.
Ao dizer-se inocente quanto às acusações de
tentativa de golpe de Estado e invocar em seu favor supostas brechas da lei, o
inconformado ex-presidente mostra que se concebe como senhor de direitos
dinásticos e estamentais, um mandatário que se legitima pela exceção, e não
pelas regras.
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