Valor Econômico
Vários grupos que aceitam as soluções simplistas e autoritárias dos extremistas querem apenas sementes de esperança. É possível fornecê-las sem ser populista ou defender o extermínio do outro
Desde o final da Guerra Fria, nunca houve um
momento tão difícil para a luta democrática. Em várias partes do mundo surgem
fortes oponentes à democracia, como nos Estados Unidos, na Alemanha, na França,
na Argentina e no Brasil. E mesmo quando extremistas perdem eleições ou não
conseguem implementar suas propostas autocráticas, continuam como uma força
política relevante e à espreita numa guerrilha contra o sistema político. Não é
possível decretar, ainda, a derrota dos democratas, que têm vencido em muitos
casos, embora não em todos. Mas também não se pode ignorar o fôlego e o
enraizamento desse novo autoritarismo. Uma longa batalha pode ser nosso
horizonte.
O novo cenário surgiu depois de uma longa onda de democratização de diversos países pelo mundo, para usar a definição célebre de Samuel Huntington, que se iniciou na segunda metade da década de 1970 e foi até os anos 1990. Chegou-se a acreditar numa vitória definitiva do modelo liberal-democrático. Mas mesmo nesta época havia críticas acadêmicas e de grupos políticos sobre as insuficiências da democracia, procurando construir propostas para reformá-la e melhorar seu desempenho.
O que se vive nos últimos anos é um clima de opinião completamente diferente. Muitos atores políticos e sociais relevantes não querem reformar a democracia. Ela é um empecilho às suas ambições antissistêmicas e autocráticas. Os adversários dos extremistas - ou inimigos, adequando mais o termo à sua lógica belicista - são, em geral, defensores da democracia.
O projeto político desse novo autoritarismo
não se esgota com a chegada ao poder, é importante frisar. O objetivo é
participar do jogo para destruí-lo, em oposição aos antigos golpes de Estado da
direita ou da esquerda.
A destruição por “dentro do sistema”,
encontrando em políticos e eleitores antes defensores da democracia aliados
para essa empreitada, é a marca principal da estratégia do novo autoritarismo.
Claro que há um “choque de oferta”, isto é, o surgimento de lideranças
autoritárias que são responsáveis pela mobilização dessas ideias.
Algumas delas são recém-chegadas ao sistema
político, ao passo que outras, como Orbán e Bolsonaro, remodelaram-se e foram
capazes de se apresentar como símbolos antissistema. De todo modo, é no espaço
do jogo democrático que está ocorrendo essa batalha, que só poderá ser vencida
se os democratas entenderem como devem se adequar à nova realidade.
Com o fortalecimento dos extremistas em
vários lugares, surge um paradoxo aos democratas. Eles precisam defender o
sistema, seja por crença, seja para marcar sua identidade, enquanto os novos
autoritários misturam um discurso antidemocrático com propostas com grande
popularidade, que atingem anseios profundos de parcela relevante da população.
Assim, lideranças democráticas muitas vezes gastam mais tempo em defender a
democracia do que na disputa pela agenda que conquista os corações e mentes dos
eleitores.
O problema, porém, é mais complexo, pois
correr atrás dos temas defendidos pelos extremistas pode ser outra armadilha.
Até que ponto defender a restrição da imigração não pode atingir os direitos
humanos? Buscar o diálogo com correntes neoconservadoras do cristianismo é
importante no mundo contemporâneo, até como afirmação do compromisso
democrático de encontrar caminhos de convivência entre os diferentes. Contudo,
para quem defende a tolerância entre as religiões ou a liberdade de orientação
sexual, o quanto se pode abraçar uma agenda diferente? Tomar decisões que
rapidamente deem conta das demandas dos cidadãos é essencial, não obstante,
quais controles democráticos têm de ser desligados para se ter um governo
eficiente para garantir a felicidade geral da nação?
Para ser mais bem-sucedida, a batalha dos
democratas precisa articular melhor três coisas: a construção de novas
lideranças políticas, a produção de uma agenda mais antenada com os problemas
da sociedade contemporânea, mas com um sentido diferente da agenda extremista,
e defender com afinco a democracia, tendo a coragem de não capitular em prol de
ganhos políticos imediatos e mostrando que o regime democrático é o mais
adequado para toda a coletividade.
O extremismo certamente entendeu melhor do
que os democratas um dos grandes anseios da sociedade contemporânea: é preciso
ter novos tipos de líderes. Por essa linha apregoam que a população se cansou
da “casta” política que apenas defenderia a si mesma. A saída então seria
escolher líderes disruptivos, para usar a linguagem dos coaches das redes
sociais. Os democratas também precisam entender que os sistemas políticos se
tornaram muito mais oligárquicos nos últimos anos, gerando uma espécie de clube
dos políticos, que perderam o contato com boa parte dos eleitores e seus
problemas cotidianos. Novas lideranças são necessárias, com ideias e formatos
novos de atuação, de preferência se forem carismáticas e capazes de gerar um
vínculo profundo com os cidadãos.
O novo autoritarismo tem sido pródigo em
produzir lideranças com forte conexão com os eleitores, mesmo quando perdem
eleições, porque continuam por um longo período mantendo os laços de identidade
com parcelas que vão de 20% a 40% do eleitorado. Os democratas, mesmo quando
ganham, estão gerando líderes políticos que não se comparam aos do passado
recente, em termos de vínculo com a população, capacidade de articulação e
formulação de novas ideias.
Não se trata de imitar simplesmente os ogros
carismáticos que têm liderado os extremistas. Seria a mesma armadilha de
reproduzir, simplesmente, a agenda da extrema direita, quando isso não será
verdadeiro aos eleitores e levará a caminhos opostos de quem defende a
democracia não só como regras do jogo, mas também como valor. Só que sem
lideranças que sejam vistas como inovadoras, capazes de dialogar com as novas
linguagens e anseios do mundo contemporâneo, será impossível salvaguardar a
democracia dos candidatos do novo autoritarismo.
Em contraste com o sectarismo da extrema
direita, que geralmente só ganha eleições por uma pequena margem de apoio,
lideranças democratas têm de ser mais abertas e procurar juntar o que é
possível na construção da maioria social. Ser democrata é defender os mais
vulneráveis, combater as desigualdades e discriminações.
Entretanto, fazê-lo repetindo a lógica
polarizadora criada pelos extremistas, que leva ao integrismo das posições
fechadas, é um tiro no pé. Linguagens mais plurais, defesa de direitos e
oportunidades, em vez de restrições ou condenações eternas a grupos, são
trilhas essenciais para garantir uma hegemonia mais duradoura. Claro que tudo
isso deve ser amparado por mais conversa e alianças de quem luta contra
autoritários - a divisão dos democratas é a alegria dos extremistas.
Novas lideranças democráticas vão se impor se
entenderem melhor as angústias múltiplas dos cidadãos contemporâneos. Vários
grupos que aceitam as soluções simplistas e autoritárias dos extremistas querem
apenas sementes de esperança. É possível fornecê-las sem ser populista ou
defender o extermínio do outro. Alguns passos nessa direção podem ser citados:
serviços públicos melhores, segurança e tranquilidade para as famílias, ser
capaz de ouvir os mais jovens e entender os seus sonhos, proteger os mais vulneráveis
e propor um projeto de futuro com um cardápio de possibilidades para visões de
mundo diferentes.
É fácil contextualizar essa agenda em cada
lugar e implementá-la rapidamente? Provavelmente será difícil e trabalhoso. Mas
é preciso começar a construir essa trilha, usando a força da imaginação humana
que foi capaz de inventar o voto universal, a separação de Poderes contra a
tirania, o Estado de Bem-Estar Social, as inovações científicas que melhoraram
a qualidade de vida da humanidade e a capacidade de resistir aos déspotas que
produziram grandes tragédias coletivas. Se um dia fomos capazes de nos horrorizar
com Hitler ou Stalin, isso se deveu a uma ação política de democratas.
Para aguentar e vencer essa longa batalha
será preciso coragem para defender a democracia. Não basta ser democrata, é
fundamental enfrentar os sofismas e pressões sociais mobilizados pelos
autoritários. Acompanhando as maldades propostas por Trump ou Putin,
verdadeiros irmãos siameses, o desânimo se instala sobre nós, especialmente
porque está muito difícil barrá-los no curto prazo. É nessa hora que a pregação
de ideais, a conversa multiplicada por mil e a apresentação dos males que podem
ser causados pelo extremismo devem ser repetidos todos os dias, nos mais
diversos espaços sociais e canais de comunicação.
Levando esse raciocínio para o Brasil, vale refletir sobre o processo contra os golpistas no Brasil. Sua importância maior não está nas penas individuais, mas, sim, na garantia da punição contra o comportamento autoritário, para evitar a sua repetição. O final do julgamento, acima de tudo, tem de gritar: nunca mais! Devemos lutar contra a anistia ao autoritarismo e suas consequências, para que o filme “Ainda Estou Aqui” seja visto no futuro apenas como grande obra de arte que representou um passado sombrio.
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