sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A longa batalha dos democratas - Fernando Luiz Abrucio

Valor Econômico

Vários grupos que aceitam as soluções simplistas e autoritárias dos extremistas querem apenas sementes de esperança. É possível fornecê-las sem ser populista ou defender o extermínio do outro

Desde o final da Guerra Fria, nunca houve um momento tão difícil para a luta democrática. Em várias partes do mundo surgem fortes oponentes à democracia, como nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, na Argentina e no Brasil. E mesmo quando extremistas perdem eleições ou não conseguem implementar suas propostas autocráticas, continuam como uma força política relevante e à espreita numa guerrilha contra o sistema político. Não é possível decretar, ainda, a derrota dos democratas, que têm vencido em muitos casos, embora não em todos. Mas também não se pode ignorar o fôlego e o enraizamento desse novo autoritarismo. Uma longa batalha pode ser nosso horizonte.

O novo cenário surgiu depois de uma longa onda de democratização de diversos países pelo mundo, para usar a definição célebre de Samuel Huntington, que se iniciou na segunda metade da década de 1970 e foi até os anos 1990. Chegou-se a acreditar numa vitória definitiva do modelo liberal-democrático. Mas mesmo nesta época havia críticas acadêmicas e de grupos políticos sobre as insuficiências da democracia, procurando construir propostas para reformá-la e melhorar seu desempenho.

O que se vive nos últimos anos é um clima de opinião completamente diferente. Muitos atores políticos e sociais relevantes não querem reformar a democracia. Ela é um empecilho às suas ambições antissistêmicas e autocráticas. Os adversários dos extremistas - ou inimigos, adequando mais o termo à sua lógica belicista - são, em geral, defensores da democracia.

O projeto político desse novo autoritarismo não se esgota com a chegada ao poder, é importante frisar. O objetivo é participar do jogo para destruí-lo, em oposição aos antigos golpes de Estado da direita ou da esquerda.

A destruição por “dentro do sistema”, encontrando em políticos e eleitores antes defensores da democracia aliados para essa empreitada, é a marca principal da estratégia do novo autoritarismo. Claro que há um “choque de oferta”, isto é, o surgimento de lideranças autoritárias que são responsáveis pela mobilização dessas ideias.

Algumas delas são recém-chegadas ao sistema político, ao passo que outras, como Orbán e Bolsonaro, remodelaram-se e foram capazes de se apresentar como símbolos antissistema. De todo modo, é no espaço do jogo democrático que está ocorrendo essa batalha, que só poderá ser vencida se os democratas entenderem como devem se adequar à nova realidade.

Com o fortalecimento dos extremistas em vários lugares, surge um paradoxo aos democratas. Eles precisam defender o sistema, seja por crença, seja para marcar sua identidade, enquanto os novos autoritários misturam um discurso antidemocrático com propostas com grande popularidade, que atingem anseios profundos de parcela relevante da população. Assim, lideranças democráticas muitas vezes gastam mais tempo em defender a democracia do que na disputa pela agenda que conquista os corações e mentes dos eleitores.

O problema, porém, é mais complexo, pois correr atrás dos temas defendidos pelos extremistas pode ser outra armadilha. Até que ponto defender a restrição da imigração não pode atingir os direitos humanos? Buscar o diálogo com correntes neoconservadoras do cristianismo é importante no mundo contemporâneo, até como afirmação do compromisso democrático de encontrar caminhos de convivência entre os diferentes. Contudo, para quem defende a tolerância entre as religiões ou a liberdade de orientação sexual, o quanto se pode abraçar uma agenda diferente? Tomar decisões que rapidamente deem conta das demandas dos cidadãos é essencial, não obstante, quais controles democráticos têm de ser desligados para se ter um governo eficiente para garantir a felicidade geral da nação?

Para ser mais bem-sucedida, a batalha dos democratas precisa articular melhor três coisas: a construção de novas lideranças políticas, a produção de uma agenda mais antenada com os problemas da sociedade contemporânea, mas com um sentido diferente da agenda extremista, e defender com afinco a democracia, tendo a coragem de não capitular em prol de ganhos políticos imediatos e mostrando que o regime democrático é o mais adequado para toda a coletividade.

O extremismo certamente entendeu melhor do que os democratas um dos grandes anseios da sociedade contemporânea: é preciso ter novos tipos de líderes. Por essa linha apregoam que a população se cansou da “casta” política que apenas defenderia a si mesma. A saída então seria escolher líderes disruptivos, para usar a linguagem dos coaches das redes sociais. Os democratas também precisam entender que os sistemas políticos se tornaram muito mais oligárquicos nos últimos anos, gerando uma espécie de clube dos políticos, que perderam o contato com boa parte dos eleitores e seus problemas cotidianos. Novas lideranças são necessárias, com ideias e formatos novos de atuação, de preferência se forem carismáticas e capazes de gerar um vínculo profundo com os cidadãos.

O novo autoritarismo tem sido pródigo em produzir lideranças com forte conexão com os eleitores, mesmo quando perdem eleições, porque continuam por um longo período mantendo os laços de identidade com parcelas que vão de 20% a 40% do eleitorado. Os democratas, mesmo quando ganham, estão gerando líderes políticos que não se comparam aos do passado recente, em termos de vínculo com a população, capacidade de articulação e formulação de novas ideias.

Não se trata de imitar simplesmente os ogros carismáticos que têm liderado os extremistas. Seria a mesma armadilha de reproduzir, simplesmente, a agenda da extrema direita, quando isso não será verdadeiro aos eleitores e levará a caminhos opostos de quem defende a democracia não só como regras do jogo, mas também como valor. Só que sem lideranças que sejam vistas como inovadoras, capazes de dialogar com as novas linguagens e anseios do mundo contemporâneo, será impossível salvaguardar a democracia dos candidatos do novo autoritarismo.

Em contraste com o sectarismo da extrema direita, que geralmente só ganha eleições por uma pequena margem de apoio, lideranças democratas têm de ser mais abertas e procurar juntar o que é possível na construção da maioria social. Ser democrata é defender os mais vulneráveis, combater as desigualdades e discriminações.

Entretanto, fazê-lo repetindo a lógica polarizadora criada pelos extremistas, que leva ao integrismo das posições fechadas, é um tiro no pé. Linguagens mais plurais, defesa de direitos e oportunidades, em vez de restrições ou condenações eternas a grupos, são trilhas essenciais para garantir uma hegemonia mais duradoura. Claro que tudo isso deve ser amparado por mais conversa e alianças de quem luta contra autoritários - a divisão dos democratas é a alegria dos extremistas.

Novas lideranças democráticas vão se impor se entenderem melhor as angústias múltiplas dos cidadãos contemporâneos. Vários grupos que aceitam as soluções simplistas e autoritárias dos extremistas querem apenas sementes de esperança. É possível fornecê-las sem ser populista ou defender o extermínio do outro. Alguns passos nessa direção podem ser citados: serviços públicos melhores, segurança e tranquilidade para as famílias, ser capaz de ouvir os mais jovens e entender os seus sonhos, proteger os mais vulneráveis e propor um projeto de futuro com um cardápio de possibilidades para visões de mundo diferentes.

É fácil contextualizar essa agenda em cada lugar e implementá-la rapidamente? Provavelmente será difícil e trabalhoso. Mas é preciso começar a construir essa trilha, usando a força da imaginação humana que foi capaz de inventar o voto universal, a separação de Poderes contra a tirania, o Estado de Bem-Estar Social, as inovações científicas que melhoraram a qualidade de vida da humanidade e a capacidade de resistir aos déspotas que produziram grandes tragédias coletivas. Se um dia fomos capazes de nos horrorizar com Hitler ou Stalin, isso se deveu a uma ação política de democratas.

Para aguentar e vencer essa longa batalha será preciso coragem para defender a democracia. Não basta ser democrata, é fundamental enfrentar os sofismas e pressões sociais mobilizados pelos autoritários. Acompanhando as maldades propostas por Trump ou Putin, verdadeiros irmãos siameses, o desânimo se instala sobre nós, especialmente porque está muito difícil barrá-los no curto prazo. É nessa hora que a pregação de ideais, a conversa multiplicada por mil e a apresentação dos males que podem ser causados pelo extremismo devem ser repetidos todos os dias, nos mais diversos espaços sociais e canais de comunicação.

Levando esse raciocínio para o Brasil, vale refletir sobre o processo contra os golpistas no Brasil. Sua importância maior não está nas penas individuais, mas, sim, na garantia da punição contra o comportamento autoritário, para evitar a sua repetição. O final do julgamento, acima de tudo, tem de gritar: nunca mais! Devemos lutar contra a anistia ao autoritarismo e suas consequências, para que o filme “Ainda Estou Aqui” seja visto no futuro apenas como grande obra de arte que representou um passado sombrio.

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