O Globo
O país gosta de apontar o criminoso como
inimigo, mas ignora que ele é produto das próprias omissões
Desde “Falcão — meninos do tráfico” e das
imagens da invasão do Alemão, muita coisa mudou e, ao mesmo tempo, nada mudou.
A pesquisa Raio-X da Vida Real, feita pela Data Favela com quase 4 mil pessoas
envolvidas no crime, revela dinâmicas que o país evita encarar. Não é só
tráfico, é um Brasil que produz, abandona e depois pune seus próprios filhos.
Metade dos entrevistados tem até 26 anos. Na
favela, a juventude é curta porque a oportunidade também é. Para muitos, o
tráfico vira primeiro emprego e primeiro reconhecimento num país onde o Estado
chega tarde com a escola e cedo com a viatura. Estamos formando uma geração que
envelhecerá sem Previdência, renda ou proteção — uma bomba-relógio que nem
entrou no Orçamento.
O crime se nacionalizou, mas a base continua
sendo o cria: o jovem que conhece cada viela e morre primeiro. Nada disso é
novidade. Está nas músicas de MV Bill — “Soldado do morro”, “Falcão, soldado
morto”. O país apenas não quis ouvir.
Cai também o mito da família desestruturada. A pesquisa mostra que 52% têm filhos e metade vive em casal. São famílias reais, com afeto e rotina, vivendo sem direito. Falta proteção, não laço.
A economia do crime é de sobrevivência: mais
de 60% ganham até dois salários mínimos. O tráfico funciona como empresa sem
CNPJ, com hierarquia, metas, castigos e risco permanente. Em muitos lugares,
ocupa o espaço que o Estado abandonou. Mandar a polícia largar o aço é fácil;
difícil é fazer o Estado entrar sem farda — com escola, emprego, saúde,
cultura. Sem isso, o caos retorna. Se o crime parar, parte das favelas entra em
colapso, não por escolha, mas por falta de alternativa. A economia das bocas
move outras economias: o baile, o salão, a tia da feira.
O Sabadão talvez seja o dado mais revelador.
Trabalhadores formais que fazem bico na boca para completar renda. O Brasil
precarizou tanto o trabalho que até o crime virou bico. Entender isso não é
apologia; é compreender a motivação antes de condenar o mensageiro.
Mais da metade já foi presa, e 57% têm
familiares encarcerados. O presídio virou instituição familiar e negócio
milionário — caro, ineficaz e produtor de facções. A cadeia devolve o sujeito
pior e mais treinado, mas governos seguem apostando em encarceramento como se
fosse solução. O tráfico também se evangelizou: cultos e hinos ocupam o
cotidiano. A fé vira alívio — “se ninguém me vê, Deus me vê” —, mas também vira
força e justificativa para intolerância, especialmente contra religiões de
matriz africana.
O Brasil gosta de apontar o criminoso como
inimigo, mas ignora que ele é produto das próprias omissões. O crime é a febre;
a doença é a desigualdade. Vencer isso exige reorganizar prioridades: educação
integral, trabalho digno, tecnologia, cultura e presença real do Estado.
Medellín mudou. Sem algo semelhante, só trocaremos os nomes dos mortos.
A pesquisa aponta ainda um pacto triplo:
sociedade sem estigma, Estado com políticas reais e setor privado com inclusão
produtiva — porque, onde há oportunidade, a violência recua. A guerra não é
contra o crime. É contra os invisíveis — aqueles que só a polícia vê. Fingir
que não vemos não vai nos salvar.

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