Eu não prejulgo, mas sou um pouco cético quanto ao desempenho de Dilma Rousseff como presidente da República. Digo isto sem medo de contradizer o comentário bem positivo que fiz anteontem sobre a decisão de privatizar a construção de novos terminais aéreos.
Tampouco temo me equivocar no que se refere ao manejo da economia. Não sei se ela tem de fato toda a competência técnica alardeada nos últimos dois anos, mas agora a função dela é muito mais política que técnica. Além do que a situação econômica é boa, embora não seja a maravilha apregoada pela propaganda oficial.
A presidência é mais política que técnica, disse eu, mas Dilma não parece desorientada na briga entre PT e PMDB? Parecer, parece, mas acho que ela não demora muito a pôr ordem na casa: a caneta presidencial faz milagres. Ela talvez tenha subestimado a voracidade do pessoal por cargos, isto é bem possível, mas a esta altura ela já deve ter caído na real.
Qual é, então, a razão do meu ceticismo? Aqui o leitor terá de ter paciência com a minha ingenuidade. Para esta ingrata tarefa de analista político, eu me confesso idealista demais.
Onde meus colegas só vêem jogo bruto, cargos, grana, essas coisas, eu de repente me pego preocupado com questões de princípio, valores, condições de legitimidade e por aí afora.
E a presidência da República o que tem a ver com isso? Muito, eu diria. Para os cidadãos, a presidência não é só uma posição de mando, é também sua grande referência moral dentro do sistema político. E eles se relacionam com ela como se estivessem se olhando num jogo de espelhos. O símbolo que vier de lá eles devolvem. Se vem coisa boa, ótimo, eles se sentem moralmente bem e agradecem. Se vem coisa não tão boa, eles se olham outra vez no espelho e se fazem certas perguntas. Quem sou eu, afinal? Algum otário? Esta lição Fernando Collor deve ter aprendido.
Vou tentar ser mais objetivo. Por melhor que seja a situação material de seu país, aquele ou aquela que se investe na mais alta função de autoridade tem de optar entre muitos símbolos possíveis. Sua figura como governante não sai 100% pronta de suas experiências e de sua personalidade.
Quando assumiu a presidência, Juscelino Kubitschek, por exemplo, logo se viu diante de um desafio na área militar: dois começos de rebelião entre oficiais da Aeronáutica. Optou pelo entendimento. Anistiou-os e foi em frente com seu símbolo de cordialidade, bom-humor e civilidade.
No começo do qüinqüênio seguinte, como se relacionaram Jânio Quadros e Carlos Lacerda?
Pessimamente. Conversaram de fígado para fígado e com certeza contribuíram para os infortúnios que a partir dali o país viveu por muitos anos.
Sabemos todos que os problemas de hoje têm pouco ou nada a ver com aquela época. Graças aos deuses, à sorte e ao esforço de muitos, o golpismo daquela época ficou para trás. Custou, mas houve um aprendizado. Todas as correntes políticas aprenderam que o andor deve ser conduzido com certa cautela.
Mas daí a pensar que chegamos a uma espécie de nirvana político e moral seria um monstruoso equívoco. Não, decididamente não estamos no melhor dos mundos possíveis. É certo que a sociedade anda meio ébria de tanto consumir, mas isto não quer dizer que esteja relaxada, desatenta ou despreocupada.
Começa que Dilma precisará conter a gastança dos últimos dois anos. Lula disse sim a todos os interesses que foram bater à sua porta, mas Dilma terá de dizer não a muitos, recusando aumentos e cortando despesas. Para isto, os votos conquistados em outubro e o poder de comando inerente ao cargo podem não ser suficientes.
Nessas horas, convém ter estocada uma boa reserva de legitimidade propriamente moral, ou seja, daquela camada extra de autoridade que se nutre de valores e símbolos.
A reflexão acima nada tem a ver com o comportamento dos partidos de oposição, hoje sabidamente mais frágeis no Congresso que durante o governo Lula. O que me chama a atenção é o arquiconhecido fenômeno do rebaixamento dos valores morais do país – e obviamente eu não estou fazendo aqui uma ode “udenista” à qualidade deles no passado. Digo apenas que o rebaixamento é vez por outra promovido por personalidades que deveriam estar lutando contra ele, em virtude seja das posições de autoridade que ocupam, seja por se contarem entre os apoiadores mais entusiastas do novo governo. Faço aqui uma menção sucinta a dois casos recentes.
Poucos dias atrás a imprensa noticiou a defesa de uma tese de doutorado apresentada na Unicamp pelo senador petista Aloísio Mercadante. Mesmo sem a ter lido, pus-me a pensar se a referida tese seria aprovada se o autor não fosse um senador da República e um destacado integrante do governo que ora se inicia.
Sem tanta importância, mas igualmente ilustrativo, foi um artigo publicado no jornal O Globo de 04.01 pelo professor Cândido Mendes, pessoa de expressão na vida cultural do Rio de Janeiro e ardoroso defensor do governo Lula e da candidatura Dilma. Disse ele: “Muito da crítica ao PAC nasce desse emperro institucional e do vertedouro de lerdeza e corrupção que afligiu o início do projeto, nascido da Casa Civil, sob a então ministra de Lula”. No parágrafo seguinte, arrematando o argumento, o autor exorta a presidente a pisar no acelerador, observando que agora vivemos “…num país que, pela eleição de Dilma, rompeu de vez com o udenotucanato e seu neoliberalismo obsoleto”.
Se a sintaxe do idioma continua em vigor, eu entendi que houve, sim, “lerdeza e corrupção” na Casa Civil quando Dilma Rousseff era ministra, mas isso não importa – afinal, quem se interessa pelas críticas meramente morais do “udenotucanato”?
Foi por estas e outras que eu fiz outro dia um comentário negativo a respeito da “reabilitação” de Erenice Guerra na festa da posse.
Erenice não foi absolvida, pois a rigor nem foi investigada. E, claro, Dilma tem todo o direito de afagar quem ela quiser; nada a impede de fazer como Lula, adotando São Tomás Bastos como santo de sua devoção. Atrevo-me, porém, a lhe sugerir atenção aos símbolos que a cada passo ela estará tecendo.
Tampouco temo me equivocar no que se refere ao manejo da economia. Não sei se ela tem de fato toda a competência técnica alardeada nos últimos dois anos, mas agora a função dela é muito mais política que técnica. Além do que a situação econômica é boa, embora não seja a maravilha apregoada pela propaganda oficial.
A presidência é mais política que técnica, disse eu, mas Dilma não parece desorientada na briga entre PT e PMDB? Parecer, parece, mas acho que ela não demora muito a pôr ordem na casa: a caneta presidencial faz milagres. Ela talvez tenha subestimado a voracidade do pessoal por cargos, isto é bem possível, mas a esta altura ela já deve ter caído na real.
Qual é, então, a razão do meu ceticismo? Aqui o leitor terá de ter paciência com a minha ingenuidade. Para esta ingrata tarefa de analista político, eu me confesso idealista demais.
Onde meus colegas só vêem jogo bruto, cargos, grana, essas coisas, eu de repente me pego preocupado com questões de princípio, valores, condições de legitimidade e por aí afora.
E a presidência da República o que tem a ver com isso? Muito, eu diria. Para os cidadãos, a presidência não é só uma posição de mando, é também sua grande referência moral dentro do sistema político. E eles se relacionam com ela como se estivessem se olhando num jogo de espelhos. O símbolo que vier de lá eles devolvem. Se vem coisa boa, ótimo, eles se sentem moralmente bem e agradecem. Se vem coisa não tão boa, eles se olham outra vez no espelho e se fazem certas perguntas. Quem sou eu, afinal? Algum otário? Esta lição Fernando Collor deve ter aprendido.
Vou tentar ser mais objetivo. Por melhor que seja a situação material de seu país, aquele ou aquela que se investe na mais alta função de autoridade tem de optar entre muitos símbolos possíveis. Sua figura como governante não sai 100% pronta de suas experiências e de sua personalidade.
Quando assumiu a presidência, Juscelino Kubitschek, por exemplo, logo se viu diante de um desafio na área militar: dois começos de rebelião entre oficiais da Aeronáutica. Optou pelo entendimento. Anistiou-os e foi em frente com seu símbolo de cordialidade, bom-humor e civilidade.
No começo do qüinqüênio seguinte, como se relacionaram Jânio Quadros e Carlos Lacerda?
Pessimamente. Conversaram de fígado para fígado e com certeza contribuíram para os infortúnios que a partir dali o país viveu por muitos anos.
Sabemos todos que os problemas de hoje têm pouco ou nada a ver com aquela época. Graças aos deuses, à sorte e ao esforço de muitos, o golpismo daquela época ficou para trás. Custou, mas houve um aprendizado. Todas as correntes políticas aprenderam que o andor deve ser conduzido com certa cautela.
Mas daí a pensar que chegamos a uma espécie de nirvana político e moral seria um monstruoso equívoco. Não, decididamente não estamos no melhor dos mundos possíveis. É certo que a sociedade anda meio ébria de tanto consumir, mas isto não quer dizer que esteja relaxada, desatenta ou despreocupada.
Começa que Dilma precisará conter a gastança dos últimos dois anos. Lula disse sim a todos os interesses que foram bater à sua porta, mas Dilma terá de dizer não a muitos, recusando aumentos e cortando despesas. Para isto, os votos conquistados em outubro e o poder de comando inerente ao cargo podem não ser suficientes.
Nessas horas, convém ter estocada uma boa reserva de legitimidade propriamente moral, ou seja, daquela camada extra de autoridade que se nutre de valores e símbolos.
A reflexão acima nada tem a ver com o comportamento dos partidos de oposição, hoje sabidamente mais frágeis no Congresso que durante o governo Lula. O que me chama a atenção é o arquiconhecido fenômeno do rebaixamento dos valores morais do país – e obviamente eu não estou fazendo aqui uma ode “udenista” à qualidade deles no passado. Digo apenas que o rebaixamento é vez por outra promovido por personalidades que deveriam estar lutando contra ele, em virtude seja das posições de autoridade que ocupam, seja por se contarem entre os apoiadores mais entusiastas do novo governo. Faço aqui uma menção sucinta a dois casos recentes.
Poucos dias atrás a imprensa noticiou a defesa de uma tese de doutorado apresentada na Unicamp pelo senador petista Aloísio Mercadante. Mesmo sem a ter lido, pus-me a pensar se a referida tese seria aprovada se o autor não fosse um senador da República e um destacado integrante do governo que ora se inicia.
Sem tanta importância, mas igualmente ilustrativo, foi um artigo publicado no jornal O Globo de 04.01 pelo professor Cândido Mendes, pessoa de expressão na vida cultural do Rio de Janeiro e ardoroso defensor do governo Lula e da candidatura Dilma. Disse ele: “Muito da crítica ao PAC nasce desse emperro institucional e do vertedouro de lerdeza e corrupção que afligiu o início do projeto, nascido da Casa Civil, sob a então ministra de Lula”. No parágrafo seguinte, arrematando o argumento, o autor exorta a presidente a pisar no acelerador, observando que agora vivemos “…num país que, pela eleição de Dilma, rompeu de vez com o udenotucanato e seu neoliberalismo obsoleto”.
Se a sintaxe do idioma continua em vigor, eu entendi que houve, sim, “lerdeza e corrupção” na Casa Civil quando Dilma Rousseff era ministra, mas isso não importa – afinal, quem se interessa pelas críticas meramente morais do “udenotucanato”?
Foi por estas e outras que eu fiz outro dia um comentário negativo a respeito da “reabilitação” de Erenice Guerra na festa da posse.
Erenice não foi absolvida, pois a rigor nem foi investigada. E, claro, Dilma tem todo o direito de afagar quem ela quiser; nada a impede de fazer como Lula, adotando São Tomás Bastos como santo de sua devoção. Atrevo-me, porém, a lhe sugerir atenção aos símbolos que a cada passo ela estará tecendo.
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