quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Incertezas egípcias:: Merval Pereira

Mesmo que o fantasma de uma multa de 500 libras egípcias (cerca de R$150) possa ter influenciado os menos animados, é improvável que o excepcional comparecimento, entre 70% e 80% dos eleitores aptos a votar, tenha apenas essa motivação no segundo dia das eleições parlamentares do Egito.

Da mesma maneira, a projeção do próprio partido Liberdade e Justiça, braço político da Irmandade Muçulmana, de que fará 30% do Parlamento mostra que, mesmo que lidere a coalizão mais votada, terá de fazer acordos políticos para indicar o primeiro-ministro, assim como para a eleição dos cem membros da Assembleia Constituinte que redigirá a nova Constituição para o país.

As projeções situam o partido salafista Al Nur e o centrista do Al Adl como prováveis coadjuvantes de um acordo político moderado.

Tudo indica que o espírito da Praça Tahir, desligado dos radicalismos religiosos e focado em reivindicações de mais liberdade individual e perspectiva de vida melhor, tenha orientado a maioria silenciosa, que vê nas eleições a maneira de sair da ditadura de Mubarak sem cair no controle do Conselho Supremo das Forças Armadas.

O professor Nelson Franco Jobim, especialista em política internacional, adverte que, se olharmos para a História, dá para entender que "a democracia é um processo, não pode ser imposta à força, como George W. Bush quis fazer no Iraque. Depende da formação de consensos, o que é sempre difícil em nações atrasadas e radicalizadas", como é o caso do Egito e do mundo árabe em geral, que não têm tradição democrática.

Talvez o maior exemplo de democracia no mundo muçulmano seja a Turquia, diz ele, "apesar da repressão aos curdos e de ser hoje um dos países que mais prendem jornalistas".

As Forças Armadas foram durante muito tempo as fiadoras do regime, e só a pressão para negociar a adesão à União Europeia conseguiu afastar os militares da política, e hoje vários oficiais estão sendo processados por tentativa de golpe de Estado.

O exemplo que parece se irradiar pelos países da Primavera Árabe que até agora lograram sair das ditaduras em direção à democracia através de eleições é o do governo da Turquia, cujo partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP), embora islâmico, assumiu completamente o controle político de um Estado laico.

O primeiro-ministro Recep Erdogan, considerado um dos principais líderes do mundo árabe, dá destaque a dois pontos: a necessidade da democracia e o secularismo.

Na atual crise, a Turquia teve um papel moderador com relação à Síria até que os crimes contra seu próprio povo, denúncia avalizada pela comissão especial da Organização das Nações Unidas (ONU), fizeram com que apoiasse as sanções da Liga Árabe.

A tentativa da Turquia sempre foi para que Bashar Assad realizasse reformas em lugar de enfrentar a rebelião popular.

No momento, endossa as medidas punitivas para favorecer uma saída organizada da ditadura, evitando ao máximo a instabilidade política que resultaria de uma derrubada do governo de Bashar Assad pela multidão enfurecida, que afetaria toda a região.

A preocupação é não deixar que a influência do Irã cresça, levando o Líbano e o Iraque, que mantêm apoio à Síria, a entrarem em crise política.

O governo do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento) quer tornar a Turquia uma potência regional no Mediterrâneo Oriental e no Oriente Médio, pela disseminação de sua cultura política.

O secularismo, da maneira como é vivido na Turquia, significa que a religião faz parte da sociedade, mas não a controla e nem é controlada pelo governo.

Esse modelo agrada às classes médias dos países que buscam seu caminho na democracia, como o Egito, a Tunísia, o Marrocos.

Os militares estão se transformando em uma corporação profissional subordinada ao governo eleito, em vez de se considerarem, como ainda acontece no Egito, os defensores do Estado, com poderes de interferir na política.

Os militares do Egito, no entanto, parecem não se contentar com um papel de coadjuvante no futuro e pretendem manter o controle político, auxiliados pelas incertezas que o processo eleitoral ainda gera, apesar do comparecimento maciço dos eleitores.

Observadores internacionais ressaltam que vários detalhes sobre a apuração das eleições ainda estão incertos. Para um voto ser considerado válido, por exemplo, o eleitor tem que selecionar um partido na lista, além de dois candidatos independentes, caso contrário, o voto será integralmente anulado.

Devido a essa complexidade, os partidos mais organizados têm mais chance de sair vitoriosos das eleições, e, entre eles, a Irmandade Muçulmana se destaca, com a utilização de modernos recursos tecnológicos, como iPads, para orientar os eleitores na boca de urna, mesmo sendo proibido.

O temor é que os militares, como controladores do processo eleitoral, terão também muitas chances de influenciar os resultados, manipulando os votos que estarão sob sua guarda.

Os membros do partido da Irmandade Muçulmana sempre procuraram se distanciar das massas que estão reunidas na Praça Tahir, justamente para serem vistos como aliados dos militares em caso de necessidade, e contando também que a maioria silenciosa, que compareceu às urnas em número surpreendente, prefira no final das contas um governo apoiado pelos militares do que permanecer em revolução permanente nas ruas, prejudicando a economia e afastando os turistas.

FONTE: O GLOBO

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