O ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal,
tinha um objetivo em mente quando traçou o princípio mestre para sua conduta no
processo do mensalão: evitar a pane do julgamento. Tudo reforçava a ameaça, a
começar pelo gigantismo do processo de 38 réus, muitas imputações, 600
testemunhas. Só as relações de Marcos Valério davam um livro: ele tinha quatro
empresas - DNA, SMP&B, 2S, Grafitti -, se relacionou com Banco do Brasil,
Visanet, BMG, Banco Rural, Banco Mercantil de Pernambuco, com o Presidente da
Câmara, usou a Guaranhuns como corretora, a Bônus-Banval, a Natimar. Se
relacionou com os sócios publicitários e com os políticos. Um processo que
tinha como réu o ministro braço direito do presidente da República mais popular
da atual geração. Nada parecido havia passado pelo STF, um processo
originalíssimo que exigia também originalidade no julgamento e pulso firme.
Um risco imenso, real, por tudo o que cercava e ainda cerca o caso, mais
ainda tendo em vista a coincidência de fase conclusiva da tomada de posição no
mérito com as eleições municipais. Nada ocorreu, desde o início, que pudesse
minorar os temores, ao contrário.
A relutância do revisor do processo em entregar seu voto para que o trabalho
não se iniciasse tinha sido um indício sério de pressão sobre ele, agravado com
a confirmação de que o pior estava por vir com a revelação pública de pressão
direta do ex-presidente Lula sobre ministros amigos para não haver o
julgamento. Uma CPI foi criada para pressionar o promotor do caso. Logo na
primeira sessão, houve a aprovação do revisor para um assunto já vencido em
julgamento anterior, a questão do desmembramento. Em outro momento, entre
outros lances espetaculares, a carta da presidente Dilma entrando diretamente
na argumentação do voto do relator para contestar o uso de uma frase sua sobre
as óbvias dificuldades para aprovação de pacotes, como o do setor elétrico, no
Congresso.
Os princípios de Ayres Britto ajudam o STF a ir ao fim
Foi um lampejo ameaçador, que provou o acerto do presidente do Poder
Judiciário em munir-se de cuidados para levar a termo a tarefa. Sobre a carta,
em que a presidente toma assento metafórico no plenário da Suprema Corte,
Britto deu à presidente consideração, ao esfriar os ânimos e afirmar que o
relator também não precisava usar aquele exemplo, poderia ter buscado outro. E
deixou que cada um dos contendores, presidente da República e relator do
processo, se vissem nos próprios espelhos.
Muitos outros, cruciais, surgiram, todos transpostos pelo STF sob o comando
de Ayres Britto com cordialidade, em taxas sempre elevadas, e bom senso. As
vaias ao ministro revisor, de presença praticamente protagonista, além de voto
sempre vencido, os debates às vezes ríspidos, chegando até ao insulto, entre o
relator e revisor, temperamentos fortes, nunca ameaçaram, porém, a segurança do
julgamento. Só faltava não ter divergência, tensão e calor em um caso como
esse.
A previsão de pane era concreta, reforçada também pela atuação da banca de
advogados de defesa, corporativos, como é natural, alguns deles responsáveis
pelas definições dos crimes e seu tratamento político que esperavam ver
acatados pela Corte Suprema, sem sucesso. O STF manteve-se no foco, no rumo,
não seguiu pelo caminho que a defesa tentou lhe impor.
O tribunal foi muitas vezes desrespeitado, criticado, insultado, denegrido, mas
segurou o tranco, não houve retrocesso. Todos os riscos contornados pelo
presidente ajudado, é verdade, pela coesão do plenário em torno da ideia de
evitar a pane que seria o retrocesso institucional, a interferência de um poder
sobre o outro, a mobilização contra as decisões que resultasse em paralisia do
STF.
A definição das penalidades, agora, quando se vai saber se algum dos réus
vai para a cadeia, se o Supremo vai cassar o mandato de quem ainda o tem, ou se
serão aplicados agravantes e aceitos atenuantes, uma parte subjetiva que sempre
provoca contestação, pode manter o clima de tensão. A ser piorado pela campanha
que o PT promete mover contra o STF a partir de agora, já sem perigo para o seu
resultado eleitoral.
Parte do PT diz que o julgamento influenciou as eleições (onde perdeu), e
parte desafia os que mantiveram o julgamento nesse período mostrando que nada
influenciou (onde ganhou). Sente-se o partido liberado, de qualquer forma, para
levar adiante o revide. Agora já sem Ayres Britto, que aposenta-se dia 18 e
passa o cargo ao sucessor, Joaquim Barbosa, dia 22. Barbosa deverá coordenar o
fim do julgamento com uma atuação mais suave do que a exibida até aqui, embora
a divergência, por óbvia e natural, vá acontecer. A solução é, apesar das
diferenças de temperamento, manter o critério e evitar a pane.
Ayres Britto, tal como fez o ex-ministro mineiro Carlos Veloso, vai
continuar morando em Brasília. Quando se transferiu de Sergipe, há 10 anos, sua
filha mais nova tinha 11 anos, e o filho 13. Tem um neto brasiliense de 3 anos
e todos eles adoram Brasília. Manterá a vida acadêmica, intensa, que sempre
teve, e a participação em bancas de doutorado de várias universidades, além da
literatura e o hábito da meditação, que cultiva há 20 anos. Provavelmente o que
mais o ajudou a atravessar a tormenta.
Na sua passagem pelo Supremo, produziu um livro de direito constitucional,
"Ciência Quântica do Direito", o seu sexto. Tem um livro de poemas
totalmente pronto, o "DNAlma", o sétimo. Vai alimentar a paixão pela
leitura. Ayres Britto encerra sua participação no Supremo com intensos dois
últimos anos, em que relatou a maioria dos processos de interesse da sociedade:
a homoafetividade, a autorização para pesquisas com células-tronco
embrionárias, o fim da Lei de Imprensa, a demarcação da reserva indígena Raposa
Serra do Sol, a autorização de aborto de anencéfalos (fetos com má formação no
cérebro), a confirmação da Lei da Ficha Limpa, a proibição do nepotismo no
Judiciário. Além de ter conduzido com firmeza, e sem pane, o julgamento do
mensalão.
Fonte: Valor Econômico
Nenhum comentário:
Postar um comentário