Há dez anos morria Mércia Albuquerque, advogada que decidiu abraçar a defesa de presos políticos na ditadura ao testemunhar as atrocidades contra Gregório Bezerra nas ruas de Casa Forte
Débora Duque
Era 2 de abril de 1964, quando a advogada Mércia Albuquerque passava pela praça de Casa Forte e se deparou com a cena que se tornaria um dos símbolos das atrocidades do recém-instaurado regime militar. O militante do PCB Gregório Bezerra, ensanguentado, era arrastado pela rua sob a ordem do coronel Darcy Villocq. Com apenas três anos de formada na Faculdade de Direito do Recife, Mércia decidiu, naquele momento, abraçar a defesa dos presos políticos da ditadura. Gregório foi o primeiro dos 490 clientes que buscaram seus serviços até a anistia. Uma década após sua morte, em 29 de janeiro de 2003, a figura de Mércia, vítima de um câncer, ainda exala liberdade.
"A decisão de começar a atuar na defesa dos presos políticos foi fruto mais do sentimento afetivo de quem viu amigos e colegas serem presos e processados, do que de uma efetiva experiência profissional. Naquele momento eu não tive consciência dos riscos e incompreensões de que seria vítima", relatou a própria Mércia, em um de seus escritos. Além de Gregório, a quem acompanhou até a libertação, em 1969, sua extensa lista de protegidos, como David Capistrano, Luciano Siqueira, vice-prefeito do Recife, Manoel Lisboa, Selma Bandeira, Júlio Santana e Carlos Alberto Soares.
"Foram 490 com sentença, mas se formos contar os habeas corpus, o número é muito maior", contabiliza Otávio Clementino de Albuquerque, viúvo de Mércia. Ele viu a esposa ser presa 14 vezes durante o regime. Também a viu sofrer perseguições e intimidações de todos os tipos. O telefone da casa, na rua Sete de Setembro, não parava de tocar em momentos de tensão política. Do outro lado da linha, sempre havia uma voz dirigindo ameaças contra o casal e o filho, Aradin, nascido nos anos de chumbo.
Apesar da pressão constante, Mércia nunca pensou em abandonar o trabalho, nem o marido a pediu que o fizesse. A atuação da advogada ia muito além das audiências. "Era uma espécie de mãe, amiga, conselheira, além de advogada. Era tudo isso ao mesmo tempo. Uma pessoa fantástica", diz o artista plástico Abelardo da Hora, a quem Mércia defendeu por um curto período em 1964. Sua rotina incluía visitas diárias à Casa de Detenção, ao Bom Pastor e à penitenciária Barreto Campelo. Levava comida, roupas e informações do mundo externo. Do lado de fora, confortava familiares desesperados em busca de notícias dos parentes.
Quando era preciso, assumia uma causa sem receber honorários. "Só pagava quem podia, como podia e quando podia", resume Otávio Albuquerque, que sustentava a família com o salário de funcionário da Sudene. Nos diários de Mércia, sobressaem referências aos episódios mais trágicos da ditadura no Estado, como a chacina da granja São Bento, o atentado ao estudante Cândido Pinto e o assassinato de outro estudante, Ramirez Maranhão do Vale, para quem a advogada escreveu, inclusive, um poema. Trechos do diário estão disponíveis no portal do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal (RN), onde ela também atuou. A íntegra do material, cedido pela família, deverá ser divulgada na internet ainda este ano, conforme prometeu o presidente da entidade, Roberto Monte.
Fonte: Jornal do Commercio (PE)
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