À diversidade das tradições jurídicas corresponde, na doutrina, a divisão entre os que procuram inserir o estado de exceção no âmbito do ordenamento jurídico e aqueles que o consideram exterior, e esse ordenamento como fenômeno político ou extrajurídico.
Em nossas praias, o estado de exceção se assume em novos formatos. É que os poderes da República, que devem assegurar o Estado de Direito Democrático, ora se fragilizam; ora se exasperam. Fragilizam-se quando a anomia toma conta de parcelas do Executivo e da totalidade do Legislativo, agravadas sempre por sucessivos escândalos. Exasperam-se quando a Polícia Federal se transforma em poderoso partido político e o Judiciário, para além de suas atribuições constitucionais, é provocado a substituir o Poder Legislativo.
A Constituição originária fragilizou-se quando "admitiu" duas jabuticabas: a primeira foi e é a excrescência das medidas provisórias (esta miséria das leis); e a segunda, a exceção à questão do ordenamento tributário, quando admitiu a exceção quanto à cobrança do Imposto de Circulação de Mercadorias no estado-membro de destino (a regra é de o fato gerador ser o da origem do produto). Em contrapartida, o constituinte admitiu que "a lei" poderia compensar os estados produtores de petróleo e gás. Entretanto, não "quantificou" a contrapartida aos estados produtores ou confrontantes, o que implica dizer que, não sendo norma-princípio, pode ser "regulamentada" por lei ordinária. Vale dizer, qualquer número maior que zero estaria (sic) ao abrigo da lei. Mas não da agressiva e repulsiva ruptura dos poderes federativos em que uma eventual e mesquinha maioria parlamentar, em causa própria, se exerce como estivesse vivendo em um estado de exceção.
É o caso, por todos, da "lei" que alterou os royaltes devidos aos estados e municípios produtores ou confrontantes, privilegiando municípios e estados que não sofrem a extração do ouro maldito do petróleo. Medida de exceção, cortada em boa hora por liminar em ação direta de inconstitucionalidade pela altiva e independente ministra Cármen Lúcia.
Na mesma toada, o ministro do Supremo Gilmar Mendes suspendeu a tramitação no Congresso de um projeto casuísta que inibia a criação de partidos. E, na sequência, o ministro Dias Toffoli concedeu o prazo de 72 horas (quando escrevo estas notas) para que a Câmara dos Deputados envie ao tribunal explicações sobre a Proposta de Emenda Constitucional que tende a restringir os poderes do Judiciário. Proposta que retrocede à Lei de Interpretação de 1840 e a dispositivo da Carta do Estado Novo (1934). É uma jabuticaba que reforça a desarmonia entre os poderes pretendidamente federativos.
Assim, o país vive um mundo que desafia a harmonia entre os Poderes: o Executivo legisla; o Congresso autentica as decisões legislativas do governo através das medidas provisórias, ou se rebela contra a Constituição; e o Supremo então é chamado a exercer Poderes que na origem talvez não desejasse.
Sempre que o espaço do público (Congresso e Executivo) se encurta, naturalmente o espaço do privado (opinião pública, grupos de pressão, mídia, setores organizados da sociedade etc.) se expande.
E nessa ciranda se alarga e dramatiza o confronto entre os Poderes.
Sabe-se que os anos 60 foram os anos de resistência ao golpe militar; os anos 80 da redemocratização; os anos 2000 seriam os da reforma política.
Desafortunadamente, não é o que se verifica.
Muito ao contrário. O governo antecipa a "corrida" eleitoral e dispara flechas que são respondidas pela oposição e as divergências deságuam no Supremo Tribunal Federal.
É certo que se verifica em todo o mundo acentuada tendência ao desprestígio dos parlamentos, e as crises econômicas só reforçam o desapreço do eleitor. Os mandatos parlamentares, salvo as exceções de praxe, custam muito dinheiro ou servem a denominações com obscuros interesses particularíssimos.
As campanhas eleitorais dependem de "financiamentos" que depois cobram seu preço à custa do contribuinte.
Se os anos anteriores foram de resistência democrática, os anos que estamos a viver também serão de resistência democrática.
No passado contra os ditadores, no presente contra o amesquinhamento das funções públicas.
O desafio é como se expressar o cidadão comum em face do senso incomum das elites no poder.
As liberdades democráticas, tão duramente reconquistadas, estão asseguradas no texto constitucional, mas a prática do poder abriu brechas por onde a exceção penetra e pode se agigantar. O Estado é prisioneiro do mercado e dos interesses que em torno dele gravitam.
A Constituição tem de ser respeitada na sua plenitude. A dogmática constitucional não admite desvios ou recuos, ou uma espécie de "circo".
O circo é um "espetáculo" de um novo tipo de estado de exceção. E não há "sociedade do espetáculo" (Debord) sem meios que o produzam.
Vigiar e enfrentar os meios é o desafio que carece de resposta. Ao bom combate, pois.
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário