O Brasil não é para principiantes - a frase justamente famosa tem sua autoria atribuída a um dos nossos maiores artistas. Falta dizer que também não é para os veteranos, até para os curtidos, no esforço de toda uma vida, em tentativas de interpretá-lo e sondar os rumos do seu destino. De fato, o cenário que o observador, principiante ou não, tem diante de si é de desnortear, uma construção surreal a desafiar o seu julgamento: isso que aí se desenrola é uma tragédia ou uma comédia com a qual ainda não aprendemos a rir?
Para todos os efeitos, nacionais e internacionais, o senso comum tem como ponto firmado que o País é governado pela esquerda há mais de uma década, primeiro por Lula, formado nos quadros do sindicalismo de ponta da região do ABC paulista, depois por Dilma Rousseff, com histórico em movimentos radicalizados de combate ao regime militar. Aceita essa premissa, não isenta de controvérsia, o problema está em identificar a natureza dessa esquerda que tem favorecido mais as forças da conservação do que as da mudança.
Entre tantos, dois casos deveriam ser perturbadores para a esquerda: a preservação das antigas elites tradicionais, em particular as originárias do mundo agrário, alçadas, por sua iniciativa, a posições de mando nas estruturas do poder governamental graças ao controle político que exercem na política local - não bastasse, muitas delas são bafejadas com recursos públicos para se tomarem aptas ao exercício de papéis destacados na moderna economia capitalista brasileira; e a criação de vínculos inéditos, em nossa História republicana, entre política e religião, em particular as de culto pente-costal, que têm um dos seus eminentes praticantes conduzido a um ministério do governo, o da Pesca, embora, como notório, inteiramente jejuno na matéria.
Em ambos os casos, tais relações, sempre justificadas em nome da governabilidade e do que seriam as necessárias alianças a fim de dar continuidade a uma política que se apresenta como de esquerda, imprimem ao governo uma configuração quasímoda, para usar uma metáfora cara a Raymun-do Faoro - a parte moderna mal equilibrada pelo lastro que carrega do que há de mais recessivo e anacrônico na sociedade brasileira.
Nessa bizarra construção, o moderno abdica da pretensão de conduzir o atraso, impondo-lhe seu ritmo e sua lógica. Ao contrário, confunde-se com ele, impondo ao que seriam as suas forças próprias marchar de acordo com o andamento das forças retardatárias. Pior, com frequência submetendo-se a elas. Deriva daí que os movimentos sociais que vêm amparando a sua sustentação encontrem poucos estímulos à mobilização, deixando de concertar relações horizontais entre eles. A extrema pluralidade das centrais sindicais é uma das testemunhas dessa fragmentação.
Os espaços estatais, nessa lógica torta, convertem-se assim no lugar privilegiado da sua comunicação, onde são ponderadas suas razões e estabelecidos os limites para ação. Não à toa, para os padrões usuais a um governo de esquerda, vive-se um ciclo de baixa na mobilização social, que, quando ocorre, expressa, em geral, demandas de categorias específicas. A vocalização, de preferência, dirige-se para cima, em especial para uma secretaria do governo destinada a lhe prestar audiência.
Nesse processo, a esfera pública política míngua, contornada pelas vias abertas pelo Estado a fim de acolher os movimentos da sociedade civil, para onde deságuam as pretensões de todos. Noutra ponta, o contubémio entre moderno e atraso tem facultado a este último acesso fácil a posições influentes na esfera pública, inclusive nos lugares em que transitam matérias sensíveis como a dos valores e dos princípios, hipotecando as modernas gerações a um passado de sombrio anacronismo. Exemplar disso é o caso desse espantoso deputado Marco Felicia-no (PSC-SP), posto à testa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, que, por definição, caberia a um parlamentar atento e sensível aos novos temas que irrompem na cena contemporânea, e não a uma mentalidade reacionária e de entendimento curto.
Fora de dúvida que a esquerda, quando no governo, não pode ignorar seus compromissos com uma ética de responsabilidade. Não há, porém, muralha da China, como já advertia Weber em seus textos clássicos sobre o assunto, entre a ética de responsabilidade e a ética de convicção, tal como na leitura do notável especialista em sua obra Wolfgang Schluchter (Paradoxos da Modernidade, São Paulo, Edusp, 2010). E, por falar em China, ela própria, a seu modo, com a presença de Con-fúcio encravada em sua História, um bom testemunho disso.
Sob domínio de uma razão instrumental, em que se busca o poder pelo poder, são os princípios que cedem, inclusive -em alguns casos, até principalmente - aqueles com que essa esquerda que aí está se credenciou na opinião pública. Ela nasce em nome da defesa da autonomia dos movimentos sociais diante do Estado, em particular do sindicalismo, da demanda por ética na política, da denúncia corrosiva da estatola-tria imperante e do patrimonia-lismo na administração pública, teses e temas com que renovou nosso repertório político e que, na sua trajetória no poder, acabou por deixar de lado.
Hegel falava na astúcia da razão, que, em meio aos maiores obstáculos, sempre encontraria um modo superior de realização. Nessa marcha à ré em que nos encontramos, quando se devolve à moderna sociedade brasileira o pior do seu passado, devemos duvidar da sua ação sob os trópicos, ou esse regresso, ardilosamente, somente pressagia que agora estamos prontos para enterrá-lo definitivamente?
Professor-pesquisador da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo
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