Porta arrombada, cadeado nela. Muitas vezes já é tarde, mas, no caso da espionagem americana, ainda há tempo, e é urgente
O Brasil negligenciou por décadas a questão da segurança cibernética e agora, revelada a arapongagem internacional que, além da privacidade dos cidadãos, pode ter alcançado informações estratégicas do Estado brasileiro, vem a correria para lacrar a porta arrombada. E, como nossos sistemas atuais são tão precários que não permitiram, até agora, sequer a identificação do que pode ter sido violado, o discurso altaneiro do governo não ultrapassou ainda a fronteira da retórica. Os Estados Unidos apresentaram esclarecimentos insuficientes, reclamou ontem o chanceler Antonio Patriota. O embaixador americano Thomas Shannon, por sua vez, disse ao presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Ricardo Ferraço (PMDB-ES), que não tem autorização de seu governo para comparecer ao Senado brasileiro.
Os Estados Unidos continuarão agindo como se nada tivesse acontecido enquanto o Brasil não souber exatamente do quê reclamar, apresentando provas de violação. Mais promissor é o depoimento de hoje, na mesma comissão, do jornalista Glenn Greenwald, do jornal britânico The Guardian, que revelou as práticas americanas que alcançaram vários países, inclusive o Brasil. Suas revelações decorreram de entrevista com Edward Snowden, o funcionário terceirizado da CIA que detonou o esquema.
Para o governo brasileiro, o caso pode ter a utilidade doméstica de dividir a agenda anterior, dominada por assuntos negativos, com os protestos de junho e a deterioração das relações entre o governo e a base de sustentação parlamentar. A atitude pouco civilizada de países europeus para com o presidente boliviano Evo Morales, negando pouso a seu avião por suspeitar que Snowden estivesse a bordo, propiciou aos países do Mercosul a reação concertada de sexta-feira passada.
Agora, entretanto, além dos protestos e cobranças, indiscutivelmente necessários, o governo brasileiro precisa oferecer duas respostas internas: informar com precisão se houve mesmo violações, de que natureza e em que áreas, e apresentar as medidas que serão tomadas, a curto, médio e longo prazos, para que deixemos de ser um país tão vulnerável.
Uma das maiores preocupações tem sido, compreensivelmente, com a segurança dos dados militares estratégicos. O Ministério da Defesa fez consultas a todos os comandos sobre a existência de sinais e indícios de violação, e as respostas foram todas negativas. Isso não quer dizer, naturalmente, que elas não tenham acontecido.
Para cuidar do assunto, a presidente Dilma instituiu um grupo de trabalho composto pelos ministérios de Relações Exteriores, Defesa, Ciência e Tecnologia, Justiça, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e Comunicações. Por ora, foram divulgadas apenas duas medidas, que virão com pelo menos 20 anos de atraso, segundo especialistas. Uma, a implantação de cabo submarino entre o Brasil e a Europa, dispensando a passagem de dados por bases de retransmissão americanas. Outra, o lançamento de um satélite geoestacionário nacional, de natureza estatal. Mas isso, só para 2016. Hoje, o trânsito de informações militares ocupa a chamada banda X no satélite Star One, da Embratel. No furor privatista dos anos 1990, a empresa foi arrematada pelo grupo mexicano Telmex, levando junto os satélites que ela operava desde o regime militar. Hoje, parece inacreditável que tal entreguismo tenha ocorrido sem que os brasileiros tenham protestado. Diferentemente fez a Argentina, que tem os próprios satélites e até uma empresa, a Arsat, para geri-los. O Congresso, antes de sair em recesso branco, talvez consiga aprovar o marco civil da internet, que fechará algumas frestas.
Porta arrombada, cadeado nela. Muitas vezes já é tarde, mas, nesse caso, ainda há tempo. E não se fale em falta de inteligência nacional sobre o assunto. Já em 2009, no artigo "Segurança cibernética: o desafio da nova sociedade da informação", Claudia Canongia e Raphael Mandarino Júnior faziam advertências sobre nossa vulnerabilidade, relatando o que faziam outros países para se defenderem.
Recesso, ai que alívio!
Mesmo sem aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias, a LDO, o Congresso entrará em recesso, chamado branco porque não será oficial. Para o governo da presidente Dilma Rousseff, será um alívio. Ela, que gosta de dizer que não decide com a faca no pescoço, poderá fazer os ajustes essenciais para reaprumar o governo, depois da trepidação de junho. O ministro Marcelo Crivella, da Pesca, que esteve ontem com ela, disse não ter ouvido nada que faça pensar em reforma ministerial. Mas nenhum político experiente acha que Dilma poderá prescindir da reordenação do governo para superar a conjuntura instalada pelos protestos de junho e os conflitos com os aliados, que já existiam, mas se agudizaram.
Se ela acolher as críticas ao gigantismo da máquina governamental reduzindo ministérios, isso pode ter efeitos salutares sobre a economia, não pelo volume de recursos poupados, mas pelo sinal de compromisso com o ajuste fiscal. Faltarão, no entanto, pastas para contemplar todos os partidos aliados, e algumas políticas públicas serão afetadas. Se acabar com as secretarias da Mulher, da Igualdade Racial ou dos Direitos Humanos, por exemplo, a economia será de palitos, e o sinal para alguns segmentos sociais à esquerda será muito negativo.
Sem Lula
Recompor o ministério quando se governa com muitos partidos não é mesmo fácil. E, desta vez, Dilma não deve contar com o aconselhamento do ex-presidente Lula na montagem. Ele tem dito a amigos que ela precisará estar inteiramente à vontade para fazer as mudanças. Depois, dizem os amigos por conta própria, muitos dos ministros que ele recomendou ela demitiu. Alguns na tal faxina ética, outros por idiossincrasias que poderiam ter sido contornadas, como o ex-titular da Defesa Nelson Jobim.
Fonte: Correio Braziliense
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