• Num país em que grande parte da população não viveu aqueles tempo, a CV ajuda a manter a memória dos horrores da ditadura, para que ela nunca mais se repita
As forças políticas que atuaram na criação da Comissão da Verdade, oficializada em decreto de 2011, pela presidente Dilma Rousseff, já indicavam o viés a que obedeceria o seu relatório final. A expectativa de que haveria uma carga contra a Lei da Anistia, negociada na transição da ditadura militar para a democracia, por generais e líderes políticos da oposição, foi confirmada ontem na entrega formal do trabalho à presidente, depois de dois anos e sete meses de investigações e tomadas de depoimentos de vítimas e algozes da “guerra suja” entre agentes públicos — militares e policiais —, apoiados por civis, e militantes de esquerda.
Presa e torturada, por atuar em um grupo armado de resistência ao regime, Dilma deu demonstração de extremo equilíbrio ao afirmar, na solenidade de recebimento do relatório, que “a verdade não significa revanchismo (....), nem deve ser motivos para ódio ou para acerto de contas”.
Serviu para dar a sensata mensagem de que não partirá do Executivo qualquer ação para rever o passado. “Valorizamos pactos políticos que nos levaram à democracia” — completou Dilma, de forma ainda mais clara.
Escapou a cinco dos seis componentes da CV que a Lei da Anistia, de 1979, vai além do perdão recíproco: ela é a expressão legal do entendimento entre militares e oposição em torno de um projeto de redemocratização sem violência. Que deu certo, felizmente, e, por óbvio, não pode ser revisto. O dissidente na comissão, o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, argumentou, com acerto, ao discordar da proposta de revisão da lei, que o próprio Supremo, em 2010, arquivou arguição da anistia, feita pela Ordem dos Advogados do Brasil, pela mesma razão. “O espírito de conciliação negociado deve prevalecer”, afirmou, por sua vez, em recente entrevista a “O Estado de S.Paulo” o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, um dos que votaram por aquele arquivamento.
Sequer tem peso, no entender do ministro, o argumento de que o Brasil, por assinar tratados internacionais contra tortura, deve agir juridicamente para punir os acusados pela CV. Sucede, lembrou Marco Aurélio, que esses tratados não estão acima da Constituição, logo, a eles não se subordina o Supremo Tribunal.
A CV extrapolou neste ponto, mas cumpriu a missão de projetar luz sobre o paradeiro de vítimas da ditadura, assim como de relatar o funcionamento dos porões, sem deixar de implicar na máquina repressora os mais altos escalões dos governos militares. Graças ao trabalho da comissão, sabe-se agora que há 434 vítimas do regime catalogadas, número que deve subir. Listam-se, ainda, torturadores, pessoas que atuaram nos chamados órgãos de repressão.
Não foi inócua a CV. Ao contrário. Num país em que a população, em grande parcela, sequer viveu aqueles tempos, o relatório ajuda a manter viva a memória dos horrores de uma ditadura, para que jamais volte a vingar um regime autoritário, não importa se de direita ou de esquerda.
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