- O Globo
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) escolheu o caminho mais difícil, mas mais verdadeiro. A lista dos "autores de graves violações dos direitos humanos" começa por Humberto de Alencar Castello Branco, inclui ex-presidentes, oficiais generais e atravessa toda a cadeia de comando. Escolheu também a tese do crime contra a humanidade, uma rejeição implícita à Lei de Anistia.
A alternativa seria fingir que, no governo militar, os presidentes, os comandantes, os chefes nada sabiam. Que apenas os "bolsões radicais" prenderam ilegalmente, torturaram, mataram e ocultaram cadáveres. E que em instituições regidas pela hierarquia, como são as Forças Armadas, pudessem alguns sádicos fazer o que fizeram dentro de instalações públicas, sem que os superiores disso tomassem conhecimento.
Era mais cômodo fazer uma lista só de "ulstras" e "malhães", mas essa escória não agiu sem o poder a ela delegado. Em um país acostumado a contornar conflitos, a CNV preferiu enfrentar a verdade como ela é. Este era o seu papel institucional, fazer um relato para a História, principalmente para os 80 milhões de brasileiros que nasceram após o fim da ditadura. O que o país fará com o relatório já é outra etapa desta tarefa inacabada de reencontrar o passado. Mas escamotear a verdade e se curvar à versão dos militares não era uma opção.
Atravessar as mil páginas do relatório não é agradável. É importante. Há relatos terríveis, descrições de torturas e testemunhos que levantam pistas sobre mortos e desaparecidos. Há o silêncio eloquente de pessoas como o hoje coronel Wilson Machado. Ele era capitão quando tentou explodir estudantes no Riocentro, em 1981. Fracassou, felizmente. Mas ele foi perdoado com base na Lei da Anistia de 1979. Está aí a maior aberração: nenhuma anistia pode alcançar um crime futuro. O Superior Tribunal Militar encerrou o caso, decretando que deveria recair sobre o crime "o manto do perpétuo silêncio". Machado foi condecorado em 2001 pelo Exército, o que prova que os comandantes ainda concordavam com ele ao fim do governo Fernando Henrique.
A Lei da Anistia é controversa. Alguns a defendem, outros dizem que ela foi a opção possível, em pleno ditadura. A CNV, com um único voto contrário, considerou que a violência e o terrorismo de Estado de 1964 a 1985 foram "crimes contra a humanidade". Desta forma, ela se alinhou ao entendimento de organismos internacionais de direitos humanos, que cobram do Brasil esclarecimentos e punições.
A presidente Dilma Rousseff falou em respeito aos "pactos" num apoio implícito à manutenção da Lei da Anistia, mas quem decidirá isso não será o Executivo. A Justiça até agora manteve a vigência da Lei. A CNV foi pelo caminho mais atualizado, o da justiça de transição, que considera esses crimes imprescritíveis, e não reconhece anistias autoconcedidas por poderes autoritários.
O relatório diz que as violações aos direitos humanos foram "determinadas, permitidas e controladas" pelas cadeias de comando e que os crimes se deram de forma sistemática. O coordenador da Comissão Pedro Dallari me disse que se sente pessoalmente frustrado por ter apenas três corpos e uma pista a entregar às famílias dos mortos e desaparecidos. Uma das razões foi a falta de cooperação de quem tem as informações.
A primeira recomendação da comissão é que haja o "reconhecimento pelas Forças Armadas de sua responsabilidade pela ocorrência de graves violações de direitos humanos". Passaram-se 30 anos desde o fim do regime. Ainda que tarde, é o que deveria acontecer.
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