- O Globo
Como forma social, os arrastões constituem um teatro da exclusão social, de uma sociedade que ainda está muito longe do projeto de inclusão de seus segmentos populares numa vida urbana comum. Um teatro organizado numa linguagem violenta, encenado em espaços públicos, por jovens ( incluindo adolescentes) moradores de favelas e periferias, que se juntam em bandos para praticar assaltos e disseminar medo. Os arrastões conformam uma imagem dramática, cujo principal resultado é a autodanação de seus próprios protagonistas, os quais, involuntariamente, provocam uma cadeia de eventos que reavivam os piores estigmas historicamente atribuídos a eles.
Mas a força da imagem produzida pelos arrastões também arranha a política, denunciando, mesmo que de modo muito cifrado, a invisibilidade e a falta de voz de seus protagonistas. Nesse sentido, são, sem dúvida, uma forma de protesto, ainda que pouco estruturada e exposta a consequências sempre imprevisíveis para todos os envolvidos na cena.
De protesto contra a falta de direitos, lá no lugar em que moram, quase sempre exposto ao domínio dos mandões locais, sejam eles da milícia ou do tráfico; de protesto em face da falta de acesso à política, constrangida por máquinas partidárias que controlam territorialmente o poder do voto; e de reação à privação daquilo que a cidade tem de mais importante, que é o acesso à cultura e ao convívio com a diversidade. Nesse sentido, é possível identificar um vínculo oculto entre os jovens dos arrastões e os jovens do movimento Passe Livre, que foram para as ruas lutar por mobilidade urbana, e que, em 2013, acabou por deflagrar a onda de protestos que teve como ponto em comum a luta por direitos.
Apesar disso, a fronteira entre a luta dos jovens por direitos e o teatro dos jovens do arrastão se apresenta como um fosso intransponível, isolando e segregando ainda mais parcela significativa dos jovens. Trata- se de um círculo vicioso que precisa ser desarmado.
A criação de novos e amplos canais de participação política para os jovens das favelas e periferias, o fortalecimento das escolas públicas e a criação de novas formas de acesso à cultura são, em médio prazo, pontos importantes de uma já conhecida mas não realizada agenda de inclusão social, cultural e política das periferias e de reversão desse círculo vicioso. Mas, nesse caso, o médio prazo depende do que se fizer agora.
Assim como os arrastões já se tornaram cíclicos, frequentando a cena pública do Rio desde o início dos anos 90, também têm sido repetitivas as respostas dadas pelas autoridades, que tendem a reduzir a questão a um problema de polícia, aprofundando ainda mais a lógica da autodanação dos jovens periféricos. Romper com isso pressupõe fazer valer a pedagogia dos direitos, levando às últimas consequências o marco normativo do Estado Democrático de Direito, inclusive no que se refere ao direito especial das crianças e adolescentes. Pois é preciso ter claro que a autodanação de jovens de parcela da sociedade é também a danação de nosso projeto de democracia, que não sobreviverá sem que a igualdade e a liberdade sejam um bem assegurado para todos.
E, para isso, o primeiro passo precisa ser o da identificação e punição daqueles que se arvoraram a fazer justiça com as próprias mãos.
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Marcelo Baumann Burgos é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC- Rio
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