• O ar se torna rarefeito para Eduardo Cunha
- Valor Econômico
Mais uma vez, a presidente Dilma Rousseff assombra pela fraqueza: talvez seja o único caso no mundo de governante que não é protagonista da própria discussão sobre seu afastamento. O impeachment ganhou corpo no ano passado como uma manobra de contenção aos danos políticos provocados pela Operação Lava-Jato, e saiu do primeiro plano também pela ação do Judiciário. Tudo se resumiu em 2015 a um lance arriscado de Eduardo Cunha em busca de anteparo.
Agora a renda nacional desce em picada, o desemprego acelera a marcha para o desespero e a delação do antigo líder no Senado de Dilma a compromete diretamente. É todo o cenário de dissolução previsto para meados de março desde há alguns meses, mas o que catalisa mesmo o debate é seu antecessor e pretenso sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. E de novo é o Judiciário que está no centro da questão, caso acate o pedido de prisão preventiva feita pelo Ministério Público paulista junto à 4ª Vara Criminal de São Paulo.
Fica o país em suspenso, a espera da solução a ser encontrada para o processo 94.0002.00072723/2015-6, da primeira instância. A peça acusatória assinada por três promotores tem lances de inépcia. Em determinado momento, por exemplo, afirma-se que "as atuais condutas do denunciado Luiz Inácio Lula da Silva, que outrora chegou a emocionar o país ao tomar posse como presidente da República em janeiro de 2003 (...) certamente deixariam Marx e Hegel envergonhados".
Supõe-se que a referência desejada pelos acusadores seja a Marx e Engels, e ainda assim é difícil entender o que os promotores quiseram dizer com isso. Cabe agora à juíza Maria Priscila Ernandes Veiga deliberar sobre o arrazoado de 179 páginas. Certamente procurará tomar uma decisão que não seja rapidamente revista em instância superior, colaborando para a vitimização de uma liderança política.
O ex-presidente está sendo tratado como qualquer investigado ou tornou-se vítima de violências inomináveis? Haverá um carnaval ou uma revolução quando for preso? Está sendo perseguido por um pedalinho ou investigado como o arquiteto de um esquema de corrupção que depredou uma das maiores empresas do mundo? É uma questão social ou de polícia? Este é o debate que se faz e que se fará nas ruas, em qualquer conversa de bar, corredor de empresa ou padaria, ou, como cada vez é mais frequente, no mundo virtual.
Somente a meteorologia, com o clima instável em São Paulo, pode frustrar a realização no domingo da cena que já está posta, o jogo que está quase jogado. Haverá centenas de milhares de pessoas nas ruas, manifestando repúdio ao PT, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e à presidente Dilma Rousseff, nesta ordem. Desta vez o secretário de Segurança de São Paulo, Alexandre de Moraes, antecipou-se e divulgou, ainda na quarta-feira, uma previsão de público de 1 milhão de pessoas, semelhante a março do ano passado.
Não há por que ser diferente: temos o engajamento da Fiesp e o empenho de entidades organizadas da sociedade civil, reunindo médicos e advogados, os líderes da oposição mergulhados de ponta cabeça, artistas e sindicalistas convocando as massas pelas redes sociais. Não faltam mesmo bispos católicos dispostos a pisar na cabeça da jararaca.
A possibilidade de um confronto de consequências imprevisíveis diminuiu com a decisão de simpatizantes do PT de cancelar uma manifestação prevista para a região central de São Paulo, no mesmo dia e hora da manifestação oposicionista. Salvo a ocorrência de um temporal, será um ato grande, eloquente, que turbinará a pressão pelo impeachment, tema ainda travado na Câmara, pelas barganhas de Eduardo Cunha, as hesitações do PMDB e a inconsistência do pedido que já está em tramitação.
Dilma e seu fracasso administrativo, sua incapacidade sequer de nomear um ministro da Justiça sem provocar uma gigantesca crise, é apenas uma nota de rodapé nesta vertigem. Uma figurante.
Nos espaços institucionais, em Brasília e nas outras capitais, a sensação de vacância presidencial alimenta arranjos para contornar o impasse e vai tornando o ar rarefeito para o presidente da Câmara.
O caminho mais óbvio para enterrar um governo que julgam acabado seria o da aprovação do impeachment, mas esta é uma trilha condicionada pelas particularidades da Operação Lava-Jato. As lideranças oposicionistas elaboraram uma complexa equação para tentar este rumo sem pactuar o que quer que seja com Cunha. Desta vez, é a oposição, e não o governo, que deposita a esperança na ação do Supremo Tribunal Federal. Com a resposta aos embargos e recursos interpostos pelo réu que preside a Câmara contra o rito do impeachment, finalmente a Comissão Especial processante começaria a funcionar, em algum momento entre o fim de março e o início de abril.
Mas avança também o que na prática significaria o impedimento do vice-presidente Michel Temer. As revelações sobre doações eleitorais ilegais na campanha de 2014, que começaram a surgir no processo de delações premiadas, incidem no processo para a cassação da chapa presidencial que corre no TSE. Novamente esbarra-se em Cunha. É o terceiro da linha sucessória.
A confluência das duas crises converge sobre o deputado do PMDB, que ainda se sustenta no cargo pela impossibilidade de acordo entre seus dois inimigos, a oposição e o governo. É um equilíbrio que tende a se romper em breve, porque a base dos apoiadores de Cunha começará a negociar por conta própria com quem lhe oferecer mais, e o deputado pemedebista talvez perca o momento de barganhar a própria sucessão.
Só se pode compreender a proposta de se instaurar um semipresidencialismo no país, já em discussão no Senado, dentro de uma lógica em que Temer assumirá a presidência fragilizado por um processo de cassação de chapa em andamento na Justiça. A cessão de poder com o Congresso reparte entre todos o déficit de legitimidade, enquanto se espera o veredito da Justiça, que vai se tornando, mais do que nunca, o poder moderador.
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