- Valor Econômico
• Caráter antipolítico da disputa foi apenas um verniz
Entre 2000 e 2010, o rebanho de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus caiu de 2,1 milhões para 1,8 milhão de brasileiros. É curioso notar que a redução aconteceu na década em que, por meio do PRB e da pregação eletrônica, o projeto político da Igreja deu um tremendo salto.
Não se pode creditar o sucesso eleitoral do bispo licenciado Marcelo Crivella, coroado no domingo com sua vitória na eleição municipal do Rio de Janeiro, apenas ao crescimento do fundamentalismo.
Especialista no cruzamento entre política e religião, o cientista político César Romero Jacob, da PUC do Rio, tem dezenas de planilhas que mostram como o evangélico, ancorado nas regiões cariocas de menor renda e menor escolaridade, vota em evangélico, mas a concorrência é grande.
A Universal minguou em função do surgimento de denominações concorrentes no neopentecostalismo. Também foi afetada pelo avanço da estrutura do Estado nas regiões mais vulneráveis. A ausência do poder estatal na periferia é um combustível para os templos.
Na década passada, com o avanço de políticas sociais, o pentecostalismo diminuiu a velocidade de sua irresistível ascensão. Segundo dados do IBGE compilados pelo pesquisador, os pentecostais saltaram de 8,2 milhões para 17,6 milhões de adeptos entre 1991 e 2000. O total mais que dobrou. Entre 2000 e 2010, o número subiu para 25,3 milhões. Mesmo em termos absolutos a desaceleração pôde ser sentida.
Crivella cruzou a fronteira evangélica porque seu grupo político moderou o discurso e ele, em 14 anos, construiu sua resposta sobre a acusação de misturar política e religião, segundo Jacob.
O senador viveu circunstâncias extraordinárias para conseguir o que tentou sem sucesso em 2004 e 2008, quando recebeu cerca de 20% dos votos. Ele já saiu de um piso alto e tudo conspirou a seu favor para ampliar o teto: o governo estadual foi neutralizado pela crise financeira e não teve como arbitrar a disputa interna no PMDB, em que o prefeito Eduardo Paes impôs um candidato com altíssima rejeição.
A partir daí uma sucessão de acontecimentos o blindou de problemas. Aliados do PMDB não viram razões para apoiar Pedro Paulo nem à esquerda, nem à direita. O quadro de candidaturas se pulverizou, o sarrafo para ir ao segundo turno foi rebaixado e Crivella teve que enfrentar um radical na rodada decisiva. Se Freixo não passasse, terçaria armas com o desgastadíssimo pemedebista. Se prevalecesse o quarto colocado, Flávio Bolsonaro, teria pela frente um radical de direita.
Crivella ainda refletiu o fenômeno nacional. Desde o início do ano apostava-se que a eleição de 2016, encoberta pela crise política e sem as tradicionais fontes de financiamento eleitoral iria se reger em três pilares: a máquina administrativa, a capacidade de autofinanciar-se e o "recall" alto.
O transcorrer do processo eleitoral mostrou que esta trinca de fatores foi de fato decisiva, mas suplantada por um quarto elemento, que paira acima de todos os demais e se tornou o autêntico rosto desta eleição: a rejeição às esquerdas em geral e ao PT em particular, um subproduto do impeachment e da Operação Lava-Jato. É o que pode explicar o resultado obtido por Fernando Haddad à frente da Prefeitura de São Paulo e da campanha para prefeito com a maior receita do país.
A avaliação do governo Temer inexistiu no processo eleitoral. Sua legitimidade sempre em questão, a suspeita sobre a integridade de seus ministros, a draconiana reforma fiscal que propôs, nada disso esteve em discussão. A rejeição ao petismo é um fenômeno nacional muito mais sólido do que a do presidente atual.
Dos 26 eleitos nas capitais, estreantes são pontos fora da curva, o que atenua o verniz antipolítico do processo eleitoral. As restrições legais, tanto no financiamento quanto na duração da campanha, criaram um ecossistema desfavorável para quem quer ser diferente de tudo que está aí. Os tucanos João Doria e Dr. Hildon, em São Paulo e Porto Velho; e Alexandre Kalil, em Belo Horizonte, são os únicos ganhadores que jamais haviam disputado eleição. Em 2012, último ano sem turbulência política no país, havia quatro prefeitos eleitos nesta condição.
Síntese
Talvez a síntese melhor do processo eleitoral que se encerrou no último domingo de outubro esteja em Joinville, a abastada cidade que é o principal motor da economia de Santa Catarina.
Ali reelegeu-se o prefeito Udo Döhler, do PMDB. Ele se beneficiou da exposição conseguida por concorrer no comando da máquina. É empresário do setor têxtil, por anos presidente da Associação de Comércio e Indústria da cidade. Com fortuna pessoal, Döhler foi o sexto candidato a prefeito em autodoações para a campanha, outorgando-se R$ 700 mil.
O antipetismo do prefeito de Joinville é uma consequência natural de ter sucedido em 2013 a gestão do petista Carlito Merss, que não fez uma administração popular. A característica reforça-se no discurso de Döhler, que se propõe a agir para que o país "saia do clientelismo político que nos levou a tantos desacertos". De quebra, Döhler é evangélico, ainda que de uma denominação tradicional.
Correligionário de Temer, o prefeito catarinense expressa uma preocupação também que parece generalizada dos que foram eleitos mês passado: a de como conseguir ajuda do governo federal na iminência da aprovação da emenda constitucional que limita gastos por 20 anos.
"A emenda constitucional vai nos penalizar, ainda que seja indispensável para o país. O município vai sofrer na educação e sobretudo na saúde", afirmou Döhler.
O prefeito de Joinville afirma que quer dividir com o Estado e com a União o ônus da manutenção de um hospital de média e alta complexidade mantido pelo governo municipal. "Se não quiserem dividir o ônus estaremos correndo o risco de inviabilizar a cidade", comentou.
Döhler já tratou do assunto com Temer há alguns meses, em uma antecipação do movimento feito por Crivella, que anteontem cobrou repasses do governo federal para se tornar gestor pleno do Sistema Único de Saúde.
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