- O Estado de S. Paulo/Caderno 2
Trump ganhou a Presidência dos Estados Unidos. Foi trampa? Foi, sejamos educados, um engano? Ou foi trampa mesmo. Um rumor das forças sociais que, reprimidas, mas com o rabo de fora, rondam a América e o individualismo globalizado inventando modas imprevistas a olho nu?
Errei. Acompanhei o embate dos dois candidatos, mas não saí de uma das margens. Enxerguei o outro lado, mas não vi o rio correndo entre as margens arrancando arvores e derrubando pontes.
Como simpatizar com um brutamontes bilionário, narcisista, xenófobo e amante de muros; que acusava hispânicos e tinha horror de muçulmanos? Tudo isso com uma gesticulação arrogante — maior e mais clara do que a da adversária?
Trump se recusou a seguir a etiqueta dos políticos profissionais, a qual se define por meio de um viés aristocrático e maneirista, mesmo quando eles são extremadamente de esquerda ou de direita. Na sua grande maioria, os políticos se contradizem, mas evitam a ofensa que impede a composição, bem como o linguajar “vulgar”, porque atuar politicamente é uma atividade pós-monárquica cuidadosamente “correta” e, deste modo, experta e incerta. Ela tem permeado o nosso mundo desde o desmontar controlado — mas jamais extinto — das aristocracias. Mudamos os regimes, mas continuamos a amar a sofisticada vida palaciana típica das mais diversas cortes onde se usavam perucas, havia comedimento nas palavras e era profícuo o comportamento no estilo Renan Calheiros.
Fazem parte deste jogo, porém, o saber jogar e a incerteza que assombra esse nosso mundo aparentemente desvendado desde a morte de Deus. Estão justamente neste “trump” que não vem da mesma escola de teatro dos políticos rotineiros e, na campanha, atuou mais como um homem comum (protegido por sua conta bancária, é claro) do que como um candidato a fazer parte de um sistema. Tanto que brigou com o próprio partido.
Essa imprevisibilidade assusta. Sobretudo numa sociedade que se acredita exemplar e não consegue descobrir de onde veio o ato falho. Ademais, o forasteiro é podre de rico e pode sair do palco, conforme experimentamos estupefatos no Brasil.
Faz parte das tragicomédias políticas os ricos serem solidários aos pobres e os pobres eleitos ficarem imensamente ricos. Alguns comentam que isso pode ser o retorno da nobreza com outros nomes. Devo concordar, porque é impossível não ver o processo democrático reinventando dinastias e fabricando novos-ricos que adoram tríplex e sítios com laguinhos.
Sem a experiência da nossa clássica hipocrisia política (que ofende, mas não rompe), os americanos que insistem em dizer sempre “a verdade e nada mais do que a verdade e que Deus me ajude!” estão hoje vivendo o pesadelo da incerteza e da desunião. Os inventores da democracia liberal têm hoje que descobrir que o populismo e a demagogia não estão somente abaixo do Rio Grande.
Na campanha, Hillary oscilava entre ser secretária e comentarista. Sua atuação partia dos cânones da chamada “disputa eleitoral liberal” na qual cada candidato expõe suas “posições” e “propostas” e ouve o que o outro tem a dizer, mesmo que ele diga — “Como presidente, eu vou colocar você na prisão!”, como fez Trump. Ela vem, reitero, do campo normal da política (onde o “sangue-frio” é a norma), foi engajada quando estudante ao lado do marido Bill Clinton e chegou a ser primeira-dama do estado de Arkansas e dos Estados Unidos.
Em resumo, Hillary tinha todos os apoios daquilo que chamamos de “racionalidade” ou coerência (essa dimensão humana impossível). Ela falava para os jornalistas liberais e para meus amigos liberais, sobretudo para professores como o brasilianista Richard Moneygrand, que, mesmo aposentado, entrou de corpo e alma na sua campanha.
Mas como todo mundo descobriu depois da derrota, ela não atingiu os frustrados, os desempregados, os sexistas, os que odeiam e amam porque (como o próprio Trump) foram imigrantes. A chamada white trash que viu suas rendas sumirem e perdeu a sua autopercepção como sócia de um país líder e igualitário porque entrou nos benefícios dos pobres, dos negros e dos latinos, enquanto seus ídolos e os inventores do seu estilo de vida ficam cada vez mais imensamente ricos!
Eis os Estados Unidos inventores de “bilionários” que acabaram com os “John Does” da América de Frank Capra. O homem comum passou a ser um projeto difícil, exceto quando surge um Donald Trump acenando com um destino maior para a multidão de Donald Ducks que o elegeram.
Agora, resta a esperar pelo milagre da união num sistema fundado na legitimidade da discórdia. Um país construído por cima de uma brutal guerra civil e — justamente devido à desunião — no mito de que o todo é feito por suas partes que o englobam. Na comunidade marcada pelo individualismo mais áspero e implacável, como dizia o sociólogo Robert Bellah, do mundo.
Haja bom senso, se é que ele ainda existe.
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Roberto DaMatta é antropólogo
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