- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
Quem são eles? De onde trazem seu desamparo e sua solidão? Que droga é essa que supostamente alivia dores, preenche vazios, inventa alegria, ampara os desamparados? Que dor é essa que dói mais do que a dor da droga que a alivia? Ninguém se desampara sozinho. Amparo pressupõe vínculos, família, amigos, estar junto. Quem, então, os desamparou? Por quê?
Caminharam sozinhos, com as próprias pernas, para o gueto da Cracolândia? Se não, quem os empurrou até lá? Quem os aprisionou no cerco de fumaça e pó, na loucura disfarçada do faz de conta que mata socialmente? Quem é o traficante que deles se aproveita e os descarta no lixo da vida, no monturo humano da cidade? Por que deixaram de ser amados? Que desamor é esse que enche de ramela os olhos da cidade? Quem puxou a descarga da privada da vida diante de todos nós, e não ouvimos nem vimos mesmo sendo o dejeto gente como nós?
Quem decidiu que Cracolândia se escreve com "c" minúsculo e não com "C" maiúsculo? Quem decidiu que a cidade dos mortos-vivos não é também a cidade? Que não é um sistema com poder, dono, polícia própria, mecanismos cruéis de mando e opressão? Que não é, também, um sistema de regras sociais, de esperanças, de solidariedade, de ajuda mútua, de reciprocidade?
Quem decidiu que eles não fazem parte da cidade nem fazem parte da sociedade? Com base em que constituição, em que regra, em que bíblia? Aquele Cristo da revolta contra a primeira pedra já não se revolta, já não prega, já não ensina? Deus morreu? Saiu no jornal? Na primeira página das grandes notícias ou na das ocorrências policiais?
Que hipocrisia é essa que aprisiona a nós também no círculo de ferro de nossa arrogância, de nossa prepotência, de nossa omissão, de nossa incompetência para lidar com nossa própria alienação, nossa falta de consciência social, nossa falta de generosidade para com o outro que é o visível das invisibilidades de cada um de nós? Que polícia é essa que ao ameaçar o outro nos ameaça e, sobretudo, se ameaça a si mesma na negação do direito que é alicerce de sua existência e de sua missão na proteção da sociedade? A culpa é da vítima?
O que mais espanta nas intervenções na Cracolândia é a montoeira de respostas sem perguntas qualificadas, antropologicamente fundamentadas, para que se possa encontrar uma saída respeitosa e construtiva para esse grave problema social que é o da fratura que nos divide, que criou entre nós o confinamento como técnica para enquadrar e banir os do lado de lá e aliviar a consciência dos do lado de cá.
Como é possível responder se não se perguntou? Quem pergunta? Mas perguntar a quem? O populismo barato manda perguntar ao povo, supostamente os que não estão na Cracolândia nem querem estar nem gostam de quem lá está. E porque não estão lá não sabem responder. As respostas que deles vêm são as dos alienistas, dos que têm medo do diferente e da diferença. Como já tiveram dos loucos, dos tuberculosos e dos leprosos, mandando a polícia prendê-los e confiná-los em manicômios, sanatórios e leprosários.
Respostas dos que acham que resolvem os problemas sociais confinando os diferentes, os discordantes, os desiguais, os desvalidos. Os excluídos, dizem os sábios da faxina social. Excluídos de quê? Eles compram. Portanto fazem parte do mesmo sistema de que os de cá fazem parte, porque comprar na sociedade de coisas e coisificações, de que todos fazemos parte, é o único ato que dá identidade a cada um. Está incluído quem compra. Do lado de lá, eles compram drogas e há quem as venda. Seguem as mesmas regras que disciplinam a vida dos do lado de cá, que são membros do mesmo sistema que rege o outro lado.
Já o populismo demagógico manda perguntar aos sem-teto e aos drogados. Eles é que sabem. Sabem? Que respostas podem eles dar que já não deram na sua opção sem alternativa pelo gueto? O gueto é a resposta, a fuga, o esconderijo, o lugar dos sem lugar. Ali, o que mais chama a atenção dos passantes é, justamente, a invisibilidade das pessoas que habitam a Cracolândia. Elas não têm idade, não têm sexo, não têm rosto.
Ali habitam os filhos da urbanização patológica, do desenvolvimento econômico sem metas sociais, do desenvolvimento social excludente. Ali estão os que atravessaram o espelho da sociedade anômala e foram viver no lado do avesso, do mundo ao contrário, em que o feio fica bonito, o ruim fica bom, o desespero vira esperança, a falsa esperança do nada e do nunca. Ali se vive o lado utópico da morte. Ali os dejetos e os excrementos de cada um não fedem nem sujam.
Tudo que se faz supostamente em favor deles acaba sendo contra eles e contra nós. Tudo que se diz deles desdiz tudo que sabemos sobre a condição humana.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto), dentre outros.
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