sexta-feira, 9 de março de 2018

José de Souza Martins: A convulsão do sagrado

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico 

O declínio da proporção de católicos em relação à de evangélicos no Brasil é numericamente verdadeiro e sociologicamente falso. O que importa na compreensão do fenômeno é que cresceu significativamente a religiosidade, a intensidade da religião, tanto de católicos quanto de evangélicos e dos adeptos de outras crenças.

Na sociedade brasileira está havendo uma convulsão do sagrado. É ela, e não apenas o rótulo da fé, que pede reflexão. Logo seremos mais religiosos e, provavelmente, mais intolerantes com aqueles que de nossa crença diferem.

Os censos revelam a conversão de católicos nominais a não católicos, mas nada revelam sobre a conversão de nominalmente católicos à fé católica, que vem ocorrendo. Do mesmo modo que nada informam sobre a conversão de evangélicos de determinadas igrejas em crentes de outras igrejas evangélicas, até mesmo com novo batismo.

Para compreender esses deslocamentos e reformulações da fé, sugiro distinguir religião de batismo (ou de iniciação) e religião de convicção. Esta última é a que explica o que está ou não está mudando nas filiações religiosas e o que está acontecendo com o imaginário religioso do brasileiro. Além disso, há o crescimento da participação de católicos nas cerimônias tradicionais do catolicismo de massa, como a procissão do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, que já chega a 2 milhões de fiéis, a maior cerimônia religiosa brasileira. E, também, as romarias a Aparecida (SP), a Bom Jesus da Lapa (BA), a São Francisco de Canindé (CE), a Pirapora do Bom Jesus (SP) e, dos devotos do padre Cícero, a Juazeiro do Norte (CE).

O Brasil está passando por uma forma peculiar de reavivamento religioso, tanto entre católicos quanto entre evangélicos. Há um rearranjo das orientações religiosas decorrente das mudanças sociais do último meio século. Uma pesquisa mostrou até que mais de 1 milhão de brasileiros tem fé, mas não tem religião. Um traço de nossa modernidade recente e vacilante.


O recenseamento de 2010, o último disponível, mostrou que o catolicismo se debilita nas áreas de fronteira, na extensa Amazônia. O Estado de Rondônia já é majoritariamente não católico, evangélico. O mesmo se dá no Estado do Rio de Janeiro, onde os não católicos são maioria porque o catolicismo se debilita na periferia das regiões metropolitanas. É mais simples organizar uma igreja neopentecostal do que uma paróquia católica.

Nos dois casos, lugares de ocupação relativamente recente, que são também lugares de migrantes, abertos à procura de nova inserção social e de ajustamento na geografia da sociedade de consumo. Não é estranho que em algumas igrejas os ministros sejam mais gerentes de negócios da fé do que sacerdotes do sagrado. Não vendem indulgências, mas vendem a certeza da prosperidade em tempo de crise.

Tanto na Amazônia quanto na periferia urbana, são esses os lugares de tensão e de violência, lugares de maior número de conflitos fundiários e de linchamentos. Aqueles em que a sociedade está sendo reinventada, onde valores estão sendo descartados e novos valores estão sendo buscados.

O censo indica, também, que entre os idosos, socialmente mais estáveis, é maior a opção pelo catolicismo. Nessas mesmas áreas, é maior a presença das igrejas neopentecostais. Tudo nos fala de uma diversificação do cristianismo e das formas da fé, do jeito de ter fé.

Estamos em face de um momento de transição religiosa, uma das várias transições sociais concomitantes. Há muitos anos supunha-se que essa transição seria indicativa de maior secularização da sociedade, decorrente sobretudo da migração e da urbanização.

Mas a religião vem ocupando mais espaço e mais tempo da vida cotidiana e se propõe, mesmo, como uma reação ao vazio de nossa cotidianidade de carências e insuficiências. O ter menos no mundo do dinheiro tem induzido a ter mais fé para ter mais dinheiro. As igrejas evangélicas são, no geral, eficazes igrejas de inclusão social conservadora.

Tenho observado, pelo Brasil afora, que o fenômeno da conversão religiosa não se explica pela polarização "católicos" e "evangélicos". Quando se fala em católicos, fala-se numa única igreja, orientada por uma única e mesma doutrina e sujeita a uma autoridade central, a do papa. Quando se fala em evangélicos, fala-se em dezenas de igrejas e seitas, sem convergência doutrinária, sujeitas a extenso e desencontrado número de autoridades religiosas.

Além disso, fala-se aí em pelo menos dois grandes grupos de orientações opostas: de um lado, nas igrejas originárias das reformas protestantes, as igrejas da fé mediada pela razão; e, nas igrejas pentecostais e neopentecostais, as da experiência da fé mediada pela emoção.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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