- Valor Econômico
Projeto de lei em pauta compromete a transparência
No Brasil o poder passa de pai para filho, neto e até bisneto. Com a regra de destinar 30% dos fundos públicos para mulheres, oligarcas privilegiaram mãe, esposa, filhas e até ex para continuar tudo em família. Do outro lado do balcão, as elites empresariais também se perpetuam de geração em geração: Marcelos sucedem Emílios, que pegam o bastão de Norbertos.
Nos anais dos escândalos de corrupção que nos assolam de tempos em tempos, curiosidades ilustram como se articulam as engrenagens entre os donos do poder na política e na economia ao longo das décadas. Na Lava Jato, o lobista da Odebrecht no Congresso era filho do lobista da mesma construtora no escândalo dos Anões do Orçamento, mais de um quarto de século atrás. Os genes da política são dominantes no Brasil.
Apesar do desserviço prestado por políticos e grandes empresários inescrupulosos, não podemos generalizar e demonizar a representação de interesses junto aos órgãos do Estado. De associações de vítimas de rompimentos de barragens a ruralistas, passando por empreiteiras e ONGs ambientais, todos têm o direito de levar seus pleitos, defender suas posições e apresentar informações a nossos representantes no Executivo, Legislativo e Judiciário para que suas decisões sejam tomadas da melhor forma possível.
Para evitar que o lobby legítimo degringole em corrupção, porém, dois requisitos são essenciais: transparência e condições equilibradas de acesso.
Na sua delação na Operação Lava Jato, o lobista Cláudio Melo Filho, da Odebrecht, afirma que a sala de espera (daí vem o nome da atividade, "lobby") do gabinete do ex-senador Romero Jucá era "sempre concorrida e frequentada por agentes privados interessados na sua atuação estratégica".
São incontáveis os lobistas que atuam diariamente nos corredores do Congresso e nos gabinetes dos ministérios. Mas como o lobby não é regulamentado no Brasil, não sabemos sua identificação, vínculo profissional, a mando de quem trabalham e quais interesses eles representam. É justamente para permitir à sociedade conhecer quem se encontra com nossos governantes que essa atividade profissional é regulada em vários países. Mas não há modelo pronto para copiarmos; devemos estudar o que tem de melhor em cada um e ajustá-lo às nossas necessidades.
Tramita em regime de urgência na Câmara o Projeto de Lei nº 1202/2007, de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que "disciplina a atividade de 'lobby' e a atuação dos grupos de pressão ou de interesse no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal". Na sua versão original, a proposta tinha três eixos: I) credenciamento prévio de entidades, empresas e lobistas perante a Controladoria-Geral da União; II) oferecimento de igualdade de condições entre partes contrárias na elaboração e tramitação de propostas normativas, como nas audiências públicas e III) exigência de apresentação de relatório anual de atividades perante o Tribunal de Contas da União, discriminando matérias defendidas, reuniões e até mesmo despesas incorridas no lobby.
Comparando as propostas apresentadas no Congresso brasileiro desde a década de 1990 com a experiência internacional num estudo encomendado pelo IPEA, os cientistas políticos Manoel Santos e Lucas Cunha (UFMG) classificaram o projeto original de Zarattini no mesmo patamar das legislações dos Estados Unidos e Canadá, os dois países mais avançados na regulação do lobby.
No entanto, durante a tramitação nas comissões, a proposta foi desfigurada. Os substitutivos propostos pelos relatores, os ex-deputados César Colnago e Cristiane Brasil, esvaziaram completamente seu conteúdo, a começar pela substituição do termo "lobby" pelo eufemístico "relações governamentais". Além disso, o credenciamento prévio tornou-se facultativo, a igualdade de armas entre visões contrárias virou mera sugestão e a prestação de contas foi eliminada. Em suma, lobbies poderosos conseguiram tornar inócua a proposta de regular o lobby.
Caso esse esvaziamento da proposta de regulamentar o lobby de modo mais abrangente vingue, perderemos uma excelente oportunidade de tornar a atuação dos lobbies mais transparente no Brasil. Mas este não é nosso único problema na área.
Como ficou evidente na Operação Lava Jato, grandes empresas obtêm acesso privilegiado a parlamentares, magistrados, ministros e até mesmo junto ao Presidente da República. Em outra direção, associações empresariais e entidades de representação de classe conseguem contratar consultorias e escritórios de advocacia para realizar avaliações de impacto, estudos jurídicos e fazer corpo-a-corpo com autoridades governamentais.
Um dos graves problemas no funcionamento de nossa democracia é que poucos dispõem de meios para defender seus interesses de modo ativo junto ao governo. Além da natural dificuldade de mobilização, entidades da sociedade civil em geral não possuem recursos humanos e financeiros para pressionar de modo efetivo nossos representantes em prol de interesses coletivos, tal qual o fazem conglomerados econômicos e grandes corporações. Apesar de estarem surgindo algumas excelentes iniciativas de empreendedores sociais para melhorar o poder de influência desses grupos por meio da tecnologia da informação, é urgente buscar soluções para nivelar o campo de disputa no Brasil ("to level the playing field", como dizem os americanos).
Nesse sentido, desperta grande preocupação a recente decisão do governo de extinguir conselhos e colegiados. A depender de como a Casa Civil do ministro Onyx Lorenzoni conduzir esse processo, teremos um grande retrocesso na participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas no Brasil.
Com o decreto de Onyx extinguindo conselhos sociais importantes e a aprovação de uma lei regulando o lobby de acordo com o interesse dos lobistas, as perspectivas para a defesa dos interesses coletivos ficarão ainda mais sombrias.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
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