- Folha de S. Paulo
Sem nada para fazer, alunos de física podem acabar indo assistir aulas sobre Marx
Na semana passada, o governo Bolsonaro marcou mais um item no checklist do novo autoritarismo: declarou guerra às universidades.
Como no caso da guerra ao Supremo Tribunal Federal, foi uma jogada inspirada no que o ditador Viktor Orbán está fazendo na Hungria. Recentemente, o líder húngaro mudou a lei para inviabilizar a permanência da Universidade Centro Europeia (CEU) na Hungria. A universidade deve se transferir para Viena, na Áustria.
A CEU foi idealizada por intelectuais que combateram a ditadura comunista, como o dissidente e depois presidente da República Tcheca Vaclav Havel, e financiada pelo bilionário húngaro George Soros.
Durante a transição para o capitalismo nos anos 1990, a CEU era considerada uma referência de excelência na Europa Central. A universidade foi expulsa da Hungria por ter sido um importante centro de promoção e estudo da democracia húngara, e por sua agenda modernizante, que incluía um programa de estudos de gênero.
É neste mesmo embalo que vamos por aqui.
Bolsonaro começou a semana declarando que cortaria verbas destinadas aos cursos de sociologia e filosofia, argumentando que essas coisas não têm muita utilidade prática.
Na verdade, é difícil saber que pesquisas serão úteis no longo prazo. Por exemplo, quando fui para Oxford fazer meu doutorado em sociologia sobre a transição do Leste Europeu do comunismo para o capitalismo, nunca imaginei que um dia um idiota destruiria a democracia húngara e inspiraria um bando de idiotas brasileiros a tentarem a mesma coisa.
No dia seguinte, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pode ter cometido crime de improbidade administrativa ao declarar que mandaria menos verbas para universidades federais que praticassem "balbúrdia" (atos políticos de esquerda).
Além da possível violação legal, Weintraub está errado sobre o papel de atividades políticas na universidade. As grandes universidades do mundo se empenham para trazer para dentro de si as grandes discussões de seu tempo.
A união dos estudantes da Universidade de Oxford, por exemplo, já foi lugar de debates bastante quentes. O leitor interessado pode encontrar no YouTube um debate com Malcolm X em 1964. Os partidos britânicos têm seus clubes na universidade, e é considerado bastante saudável que os alunos participem dessas discussões.
Por essas e outras, Oxford produziu boa parte dos primeiros-ministros britânicos. Entre eles, recentemente, um conservador graduado em Politics, Philosophy and Economics (PPE), David Cameron.
Já que estava no embalo, Bolsonaro fechou a semana com o anúncio de um corte de 30% das verbas das universidades federais. Como bem notou Leandro Beguoci no podcast da Folha Café da Manhã, o corte deve tornar diversas universidades inviáveis.
Beguoci também lembrou que as faculdades menos afetadas pelos cortes serão justamente os cursos de humanas de que reclamam os bolsonaristas. Graduações em sociologia ou filosofia são bastante baratas.
O que custa caro é laboratório, equipamento, o tipo de coisa de que dependem os cursos de exatas e biomédicas. Sem nada para fazer, os alunos de física podem acabar indo assistir aulas sobre Marx.
Nesta semana o chanceler brasileiro fará uma viagem a Hungria e Polônia. Vamos ver que outras ideias trará na bagagem.
*Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
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