- O Globo
Na sondagem maliciosa do roçar de mãos, aos abraços e beijaços, ninguém se pergunta sobre preferências por ex ou atual presidente
Desculpem. Aqui no Rio de Janeiro já estamos no carnaval.
Ruas e praias tomadas pela descontração dos blocos e shows, em notável pausa às preocupações com a falta de qualidade da água que rola das torneiras e chuveiros, com a qual escovamos os dentes e tomamos banho. Água de beber, só mineral, para nós que podemos.
Fora da solidão das redes sociais, as radicalizações não têm vez. Na sondagem maliciosa do roçar de mãos, aos abraços e beijaços, ninguém se pergunta sobre preferências por Lula ou Bolsonaro, pelo menos até Quarta-Feira de Cinzas. Na curta festa pagã, a bênção da conciliação.
Em paralelo, outros desfilam vaidades e arrogância, na passarela entre o Palácio do Planalto, Parlamento e tribunais, no esquecimento do que por ali se passou para conquistarmos a democracia e pacificar a nação, no epílogo das manifestações populares pelo fim da ditadura de 1964.
Comícios se sucediam, com milhões de pessoas pelo Brasil inteiro, em favor da aprovação de eleições diretas, resumida na Emenda Dante de Oliveira, derrotada no Congresso em 25 de abril de 1984.
Novos comícios para autorizar a participação da oposição no pleito indireto pareciam o louco sonho da vitória impossível, já que o regime possuía maioria no Colégio Eleitoral que se reuniria em 15 de janeiro de 1985.
Para garantir a vitória, o PDS buscou na Justiça Eleitoral a nulidade dos votos dados a candidato de outro partido. Perdeu. (Resolução 12.017, de 27/11/1984). Aqui está a Justiça, a reverenciar as leis e o povo.
A partir daí, o Congresso solta a voz, e as dissidências governistas acabam por garantir a vitória de Tancredo Neves, o candidato da oposição.
Doente, internado no Hospital de Base de Brasília, não conseguiria tomar posse. A madrugada daquele 15 de março foi um teste para os nervos de todos.
Poderia o vice, José Sarney, prestar o compromisso perante o Congresso na ausência do titular? O PDS sustentava que o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, era o legitimado para assumir a chefia do Executivo e, no caso de impedimento ou morte de Tancredo, convocar nova eleição indireta.
Sem o nome de Tancredo, a vitória seria de Paulo Maluf, por ele derrotado.
Ulysses repeliu a ideia e com outros companheiros dirigiu-se ao prédio do Ministério da Fazenda, onde Francisco Dornelles, sobrinho de Tancredo, exercia o cargo de secretário da Receita Federal.
Na era sem celulares, dali partiram os contatos para uma reunião com o ministro Leitão de Abreu, antecipando-lhe o assunto que, claro foi imediatamente transmitido ao então presidente, general João Baptista Figueiredo.
Na reunião, já com a presença do general Leônidas Pires Gonçalves, que viria a ser ministro do Exército, bateu-se o martelo: Sarney tomaria posse.
Juntaram-se, assim, os três poderes da República, acionados pelo povo, é sempre bom destacar, para que se encerrasse o ciclo militar nas sucessões presidenciais indiretas.
O passado passou, mas viva está a determinação constitucional de independência e harmonia entre os poderes.
Fala-se habitualmente em judicialização da política, mas é bom lembrar que nessa areia movediça, o Supremo Tribunal Federal sempre agiu por provocação de partidos ou de políticos, especialmente na defesa dos direitos das minorias.
O senador Pedro Simon foi buscar na Suprema Corte o direito de instalar Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar corrupção. Ganhou, contra a interpretação da Mesa Diretora do Senado Federal.
O PCdoB lá no mesmo STF obteve a declaração de inconstitucionalidade da cláusula mínima de desempenho eleitoral para o funcionamento de partidos políticos.
Muitos exemplos poderiam ser citados e, na sequência, tudo transcorreu em ambiente de normalidade, com as democráticas divergências de cidadãos ou mesmo de magistrados do colegiado que proferiu as sentenças.
Não há judicialização espontânea da política. Os processos começam por iniciativa das partes. À Justiça cabe julgá-los. E decisões judiciais são cumpridas. Mesmo no carnaval.
*Miro Teixeira é jornalista e foi deputado federal
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