Vamos
trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Que a saliva
não acabe nunca!
Depois
de quase dois anos ouvindo absurdos políticos e assistindo desorientados às trapalhadas
totalitárias do presidente; depois dos cerca de nove meses de uma pandemia de
muitos mortos, para os quais as autoridades federais não deram a menor bola;
depois de uma recuperação significativa de nosso PIB, que fez o Brasil ter
agora, contados pelo IBGE, 199 mil milionários e 52 milhões de pessoas, um
quarto de sua população, vivendo abaixo da linha de pobreza; depois de tanto
susto e surpresa, os brasileiros foram enfim às urnas escolher seus
administradores municipais. Menos, é claro, em Macapá, capital do Amapá, o
estado sem luz.
Celebremos
nesta eleição o sucesso do espírito democrático, um teste de nossa capacidade
de escolher quem vai mandar na nossa rua pelos próximos quatro anos. Passaremos
quatro anos explicando a nossos pares o que anda acontecendo e eles ainda não
entenderam; ou nos declarando traídos por um governo municipal e uma câmara de
vereadores de sacripantas e enganadores. Pois é disso que trata a democracia, o
regime mais parecido com o ser humano. Ou, como dizia Churchill (ou não sei
quem), o pior regime que existe, excetuando todos os outros.
Passei
esses dias lendo o livro de Karla Monteiro sobre Samuel Wainer, “O homem que
estava lá”, uma enciclopédia do que foi a política no Brasil durante os anos de
vida do biografado. Pelo que a autora conta do período que conheci e vivi, só
posso acreditar piamente no resto do tempo que ela aborda. Trata-se da vida de
Samuel, de tudo e de todos que circularam à sua volta, desde que sua família,
fugindo do antissemitismo em voga na Europa, chegou da Bessarábia quando ele
tinha 8 anos de idade, até seu falecimento, com 68 anos, vítima de uma
pneumonia da qual não cuidou. No dia de sua morte, em setembro de 1980,
terminávamos “Bye Bye Brasil”, o filme em que, a seu pedido, Bruno, seu filho
adolescente, fora nosso estagiário, sua porta para o cinema. Samuel Wainer foi
um brasileiro que tive a sorte de conhecer. E de aprender o que ele entendia e
pensava do Brasil. E ainda foi um dos primeiros, no país, a acreditar e
promover o Cinema Novo.
Nesta
semana assistimos também ao assassinato de Cadu Barcellos, um homem brilhante,
um cineasta de talento, um cidadão generoso. Cadu foi diretor de um dos
episódios de “5XFavela”, a versão de 2010 realizada por moradores de favela, e,
aos 34 anos, se empenhava em fazer do Complexo da Maré um centro de cultura,
criação e invenção. Cadu morreu sem fazer os filmes que só ele sabia fazer. De
madrugada, numa esquina solitária da Avenida Presidente Vargas, foi assaltado e
esfaqueado à morte. Os ladrões levaram tudo o que ele tinha: um celular e
alguns poucos reais que guardara para o ônibus.
Vamos
trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Queremos
incentivar a saliva, que ela não acabe nunca, tenha sempre mais um pouco, seja
como líquido que escorre natural da boca, seja como lágrimas que jorram dos
olhos. Ou até mesmo na forma de um beijo.
E
foi como um beijo que vimos Kamala Harris cantar e dançar com um grupo de
crianças nosso baile funk de favela em português das quebradas, rebolando como
se fosse uma das nossas. O sereno Joe Biden é um Tancredo, que vem na frente
para sossegar o coração de quem tem medo do novo. Mas Kamala Harris é o futuro
que vai ser construído sobre o terreno que Joe Biden aplaina. É ela que parece
dizer aquele trecho da encíclica de Francisco, em homenagem ao santo xará:
“Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou (...) não nos turvará, o
fato de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz”.
Segundo
o IBGE, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo, com uma distribuição de
renda pior que a dos africanos mais pobres. Cada vez que melhoramos no
conjunto, são só os mais ricos que ficam mais ricos. Outro dia, policiais da
31ª DP, de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte do Rio, prenderam um homem que
estava vendendo ossos humanos, retirados de túmulos no cemitério local. O homem
declarou à polícia que estava desempregado, só roubava o que lhe era
encomendado e que cobrava muito pouco pelo serviço. O delegado Fábio Souza o
autuou em flagrante, por “vilipêndio de cadáveres”.
A vida é mesmo meio como um jogo de perde-ganha. Quanto pior agora, melhor será daqui a pouco. Vai melhorar. Vai melhorar, sim. Tenho certeza de que vai melhorar. Acho que sim.
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