Partido
Republicano corre o risco de ser reduzido a movimento de contestação do sistema
democrático
‘Nós precisamos considerar o antigo
vice-presidente como presidente eleito. Joe Biden é o presidente eleito.” A
declaração do governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, riscou o céu de
Washington uma semana depois que a apuração dos votos da Pensilvânia concluiu a
disputa pela Casa Branca. O óbvio caiu quase como uma bomba nas hostes
republicanas, ainda congeladas pelo negacionismo eleitoral de Donald Trump. A
eleição americana não terminou: ela prossegue sob a forma de um conflito
existencial no interior do Partido Republicano.
Trump
assentou sua estratégia pós-eleitoral em três pilares. O primeiro: a alegação
de que o candidato democrata fraudou a vontade popular. O segundo: o Partido
Republicano, submetido a sua liderança incontestável, rejeitará de modo
monolítico qualquer diálogo com o governo do suposto usurpador. O terceiro: o
partido funcionará, desde já, sob o signo de sua candidatura presidencial de
2024.
Trump
começa a erguer o Comitê de Ação Política “Save America” (Salvar os EUA),
destinado a operar como direção efetiva do Partido Republicano.
Simultaneamente, prepara-se para criar uma nova rede de TV, concebida como
veículo pessoal e alternativa à direita da Fox News. O projeto trumpiano é
subordinar as bancadas republicanas na Câmara e no Senado a suas conveniências,
transformando-as em máquinas de sabotagem permanente do governo Biden.
Os
tribunais derrubarão, uma a uma, as alegações vazias de fraude de Trump. Biden
será, certamente, empossado em 20 de janeiro. Mas Trump planeja jamais
reconhecer a legitimidade do novo presidente, esticando até o limite a corda
que prende os EUA ao mastro da democracia representativa. Se os republicanos o
acompanharem nessa aventura, reduzirão o partido à condição de movimento
nacional-populista de contestação do sistema democrático.
A
ascensão da direita nacionalista produziu dois tipos de deslocamento nos
sistemas político-partidários ocidentais. Países como França, Itália, Alemanha
e Espanha experimentaram o declínio de partidos moderados tradicionais e a
emergência de um grande partido de direita. Nos EUA, porém, assim como no Reino
Unido, o deslocamento ideológico realizou-se no interior de um dos dois
partidos históricos, que foi capturado pelo nacionalismo.
No
caso do Partido Conservador britânico, verificou-se uma captura parcial,
impulsionada pela rejeição à União Europeia e pelo plebiscito do Brexit. Já o
Partido Republicano dos EUA conheceu uma cisão mais profunda com seu passado.
O
governo de Boris Johnson flerta com a xenofobia e com o nacionalismo, mas não
contesta os fundamentos da democracia parlamentar ou os valores básicos do
Ocidente. O governo Trump, por outro lado, operou no plano internacional como
parceiro de regimes autoritários (Putin, Erdogan, Orbán) e, no plano nacional,
como motor de restauração da “nação de colonos brancos”. Nesse passo, os
republicanos assumiram as feições de partido da reação.
A
resistência republicana a Trump percorreu a campanha presidencial pela voz do
Projeto Lincoln, uma dissidência do partido que fez campanha aberta por Biden.
O presidente eleito recebeu mensagens de congratulação da velha guarda
republicana, representada por figuras como o ex-presidente George W. Bush, o
ex-candidato presidencial Bob Dole e o atual senador e também ex-candidato Mitt
Romney. Contudo, fora eles e um punhado de parlamentares, o partido segue mais
ou menos alinhado ao negacionismo eleitoral trumpiano. É por isso que a
declaração do governador de Ohio tem especial relevância.
A encruzilhada diante da qual se encontra o Partido Republicano interessa ao mundo inteiro. Se os republicanos se ossificarem como partido antidemocrático controlado por Trump, será comprometida a estabilidade política da maior potência mundial e se acelerará a tendência ao declínio internacional dos EUA. Se, pelo contrário, a maioria cindir com Trump, restabelecendo a tradição moderada republicana, a nação americana voltará a conversar, e os movimentos populistas de direita, na Europa e no Brasil, sofrerão um golpe devastador. Olho nos EUA.
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