terça-feira, 24 de novembro de 2020

Carlos Andreazza - A torcida de Bolsonaro

- O Globo

O governo torce pela segunda onda

O governo de Jair Bolsonaro é muito ruim, do que deriva um país paralisado, anestesiado, suscetível a qualquer desvio-isca de atenção, de súbito chocado com a revelação, surpresa só na terra dos incautos, de que a tal moderação do vice-presidente — fã do torturador Ustra e para quem não haveria racismo no Brasil — nunca passou de cálculo político por meio do qual se distinguir do presidente e seduzir as manchetes.

Mourão, um descartável, carona de chapa a ser trocado por qualquer Kassab, é a frustração possível — a falsa — num país que vegeta e que, portanto, habituou-se a ver um general da ativa como cavalo para que o único ministro da Saúde possível a Bolsonaro exercesse o cargo: o próprio Bolsonaro.

Para que não se pense que o misto de submissão e incompetência de Pazuello seja exceção no forte apache, veja-se o caso do titular da Casa Civil, de loas tão cantadas por haver liderado uma intervenção federal no Rio de Janeiro cujas escolhas, por efeitos práticos para segurança, só resultaram em que as milícias tivessem tranquilidade para se expandir sobre territórios do tráfico enfraquecido.

Um país paralisado, que só agora descobre que a presença de militares no governo, pelo menos esses que lá estão, uma coleção de ajudantes de ordens de Sílvio Frota, jamais significou qualidade de gestão e compromisso com a democracia. Nada teremos aprendido com o general Villas Bôas e sua tentativa de intimidar o Supremo em 2018.

Este péssimo governo é eficientíssimo em promover a dilapidação das instituições republicanas — e que não pensem os do alto-comando que estarão livres as suas armas.

Um país paralisado por um governo muito ruim, que envelheceu rapidamente, que vai cansado antes mesmo da metade, e cuja política econômica, outrora ao menos voluntarista, nem mais chega a oferecer trombadas — o que pressuporia a ocorrência de algum movimento. Não há movimento. Só desculpa. Um país paralisado de todo. Condição em que já estava quando a peste baixou sobre nós.

Ao contrário da propaganda feiticeira liberal-guedista, que tenta imputar efeitos retroativos ao vírus, o Brasil já tinha travado quando a pandemia se impôs; daí por que, findo o estoque de iniciativas herdadas de Temer, até Rogério Marinho e seus tarcísios, os que ainda andavam, passaram a inaugurar qualquer meia dúzia de quilômetros de asfalto. O blá-blá-blá das reformas — que não avançam (desde 2019) porque projeto não há — sendo apenas a face mais visível de uma administração que vai perdida; e que tem como símbolo um Ministério da Economia inchado e engessado, entregue a um marqueteiro, notável palestrante, tão pretensioso quanto inexperiente em gestão pública, cuja credibilidade erodida se afere nos já inexpressivos impactos de suas bravatas.

É mirando o castelo de cera de Guedes, diante do qual o bolinho de areia de Braga Netto parecerá engenharia de estadista, que se capta o melhor retrato deste governo; o que tem, à frente da pasta em que se empilharam as maiores responsabilidades, um poderoso ex-ministro em atividade.

O governo Bolsonaro é hoje o auxílio emergencial. E só. Um programa de natureza provisória, que lhe caiu ao colo para se tornar ao mesmo tempo dependência e constituição; donde pouca dúvida deveria restar sobre a prorrogação da assistência para além de dezembro. Esta será a agenda, a que garante a existência do governo, daqui até o final do ano: assegurar a rolagem do auxílio adiante, até que se desembaracem as eleições na Câmara e no Senado, em seguida ao que teremos, ao custo do teto de gastos, e com CPMF, o novo Bolsa Família.

Tudo será mais fácil se houver a segunda onda do vírus entre nós — gatilho para a extensão do orçamento de guerra. Havendo dinheiro, serão mais dois anos de campanha eleitoral legitimada pelo combate à pandemia.

O governo Bolsonaro não tem corpo para a normalidade. É como a segurança institucional ofertada por general Heleno. Nem projeto nem competência para executar. Para existir, precisa do ambiente de exceção, gerado artificialmente pela forja de conflitos e teorias da conspiração, ou imposto por um evento como a pandemia. Precisa de crises. A peste foi um presente.

A circulação do vírus, o caráter imprevisível do bicho, sustenta este governo. Mantém agudas todas as condições para que Bolsonaro, golpista essencial, alimente-se como líder sectário e amarre ainda mais a parceria oportunista com o Centrão; a costura populista pelo único interesse do presidente: a reeleição. O governo torce pela segunda onda.

Seria o paraíso. A garantia do chão de instabilidade. Terreno para cultivar, por meio da pregação antidistanciamento, a batalha com governadores, ao mesmo tempo fato novo para lavar o discurso contra as vacinas e passar a admiti-las, e escada para camuflar a incapacidade de formular o tal Renda Cidadã e justificar a continuidade do auxílio, empurrando para amanhã — questão de tempo — a queda do teto de gastos.

Um país paralisado por um governo muito ruim — de um presidente, um populista-autoritário, que prospera no caos e tende a ser altamente competitivo em 2022. Governo ruim — muito ruim — não é governo morto.

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