terça-feira, 24 de novembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Insegurança inflacionária – Opinião | O Estado de S. Paulo

A inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa 'Focus'. É uma má notícia para os consumidores.

Pesadelo da maior parte das famílias, a inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa Focus, uma consulta feita pelo Banco Central (BC) junto a cerca de cem instituições do mercado financeiro. Em um mês a mediana das projeções para 2020 subiu de 2,99% para 3,45%. No mesmo intervalo a alta de preços calculada para o próximo ano passou de 3,10% para 3,40%. São más notícias para os consumidores, especialmente num período de pouco emprego, renda baixa e muita insegurança. Mas o quadro inclui pelo menos um aspecto positivo, ou menos sombrio. Se as expectativas se confirmarem, a inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), continuará abaixo da meta, de 4% neste ano e de 3,75% em 2021.

Com a inflação abaixo da meta, a taxa básica de juros, a Selic, deve ficar em 2% até o fim do ano, segundo a pesquisa Focus divulgada ontem. O superendividado Tesouro Nacional encerrará 2020 carregando juros excepcionalmente baixos. Para o fim de 2021 a projeção indica, no entanto, uma taxa de 3%, 0,25 ponto superior àquela estimada quatro semanas antes.

Essa projeção pode parecer estranha, à primeira vista. No Brasil, como na maior parte do mundo, os dirigentes dos bancos centrais têm-se mostrado dispostos a manter a política de juros baixos e crédito fácil por muito tempo, para dar espaço à recuperação dos negócios e do emprego.

No caso brasileiro, a orientação será mantida, segundo a autoridade monetária, enquanto duas condições forem observadas: 1) a expectativa de inflação deve permanecer compatível com a meta; 2) o Executivo deve manter o compromisso de condução responsável das contas públicas. Deste compromisso dependerá a evolução da dívida bruta.

Dúvidas sobre o compromisso com a responsabilidade fiscal continuam marcando o dia a dia do mercado. As preocupações aparecem na oscilação dos juros e, de modo mais sensível, na instabilidade cambial. O dólar tem estado mais barato do que até recentemente, mas sem sinal de acomodação. A cotação da moeda americana caiu, na manhã de ontem, mas em seguida subiu, depois de uma fala do ministro da Economia, Paulo Guedes. A fala, segundo fontes do setor financeiro, decepcionou quem esperava alguma indicação positiva sobre as condições fiscais em 2021.

A cobrança de sinais mais claros sobre a condução das finanças públicas tem sido feita, de modo muito diplomático, também pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Executivos do mercado financeiro também têm mostrado inquietação diante do cenário fiscal obscuro. O Orçamento federal do próximo ano continuava indefinido ontem. Não se sabia se a programação financeira do poder central para 2021 estará mais clara no fim de novembro.

A incerteza sobre as contas públicas pode afetar perigosamente as expectativas de inflação. A instabilidade cambial é uma das formas de transmissão da insegurança para os preços. O efeito inflacionário da alta do dólar tem sido facilmente observado. Mas o desajuste das contas fiscais pode afetar os preços de forma ainda mais desastrosa.

Um amplo desarranjo das finanças oficiais pode produzir, nos casos mais graves, a chamada dominância fiscal. Quando isso ocorre, o aperto da política monetária pelo BC deixa de funcionar como remédio para a inflação. Pior que isso: produz o efeito contrário.

Uma elevação de juros pode normalmente gerar duas consequências, a contenção de preços e o encarecimento da dívida pública. Em situações de dominância fiscal, a desconfiança crescente em relação à dívida afeta o fluxo de recursos, mexe no câmbio e realimenta a inflação. O aperto monetário deixa de funcionar como instrumento de ajuste e se converte em fator inflacionário, gerando uma situação descrita por alguns economistas como o pior dos mundos. Não há, até agora, dominância fiscal no Brasil. Mas sobram razões para o governo se comprometer claramente com a seriedade fiscal e com o controle da dívida, deixando em segundo plano os objetivos pessoais do presidente da República.

Racismo e cidadania – Opinião | O Estado de S. Paulo

A resposta contra o racismo é mais civilização, e não mais violência.

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas em Porto Alegre chocou o País. Na véspera do Dia da Consciência Negra, o soldador negro de 40 anos foi espancado e morto por asfixia por dois seguranças de uma rede de supermercado. A violência registrada pelas câmeras escancara uma triste e desconcertante realidade – a cor da pele definindo o modo como um ser humano é tratado. Não há cidadania onde há discriminação.

Cabe às autoridades policiais realizar uma rigorosa investigação, apurando as circunstâncias e motivações, bem como todas as responsabilidades envolvidas. Não é demais lembrar, por exemplo, que os dois homens que mataram João Alberto Silveira Freitas eram contratados de uma empresa de segurança privada que, por sua vez, prestava serviços à rede Carrefour.

Diante do que ocorreu em 19 de novembro em Porto Alegre, é preciso lembrar o óbvio. Há algo de muito errado quando a ida a um supermercado representa tamanho perigo para uma pessoa negra, com a agravante de que esse perigo foi causado por quem estava a serviço do próprio supermercado. Absolutamente desconcertante, a situação evidencia a necessidade de mudanças profundas. Não é possível tolerar comportamento de tamanha violência vindo precisamente de quem é pago – e deveria ser devidamente treinado – para prover segurança a todos, sem discriminação.

O crime de Porto Alegre revela, portanto, a urgência de que muitos processos, treinamentos e controles das empresas de segurança sejam revistos. Vale lembrar que não se fala aqui de complexas exigências. Pede-se o mínimo. Que ninguém seja espancado e morto por asfixia numa loja de supermercado por funcionários terceirizados ou da própria loja.

Num Estado Democrático de Direito, todos – seja qual for sua cor, sexo, religião ou preferência político-ideológica – merecem respeito. Por isso, o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, como o de tantas outras vítimas de discriminação, causa profunda indignação. Não se pode tolerar que cidadãos sejam tratados da forma como João Alberto foi tratado – espancado e morto por asfixia na porta de um supermercado.

Causou, portanto, desconcerto a reação do presidente Jair Bolsonaro. Perante um País comovido com o crime brutal, o presidente da República foi incapaz de prestar solidariedade à vítima, preferindo politizar a questão.

Não é necessário importar nenhum discurso estrangeiro para se indignar contra a barbárie racista e outras tantas práticas que, em alguma medida, normalizam ou relativizam o racismo. A Constituição brasileira definiu, entre os objetivos fundamentais da República, a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Também incluiu, entre os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, o repúdio ao terrorismo e ao racismo.

Além disso, ratificando a repulsa por todo o tratamento discriminatório em função da raça, a Constituição dispôs, em seu art. 5.º, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. No ano seguinte, o Congresso aprovou a Lei 7.716/1989, definindo os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Esse aparato jurídico revela que o País não fecha os olhos ao racismo. O combate contra toda e qualquer forma de discriminação está inscrito no cerne das funções do Estado. Dessa forma, o poder público, seja em qual esfera for, não pode se omitir dessa tarefa de promover igualdade.

Obviamente, a indignação contra o assassinato de João Alberto Silveira Freitas não é motivo para depredações ou vandalismos. A melhor resposta contra o racismo é mais civilização, e não mais violência. Essa resposta civilizada inclui o dever do Estado de realizar uma investigação abrangente, que inclua todos os que, em alguma medida, possam ter responsabilidade penal sobre o crime praticado. E inclui também avançar em cidadania. Que todos sejam tratados, de fato e de direito, como pessoas – eis a grande transformação a ser buscada.

Incúria imperdoável – Opinião | O Estado de S. Paulo

Milhões de testes para covid-19 jazem nos galpões da incompetência.

O Estado revelou que quase 7 milhões de testes para diagnóstico de covid-19 estão estocados em um armazém do governo federal em Guarulhos, São Paulo, prestes a perderem a validade nos próximos dois meses. Esses kits para realização do exame RT-PCR, considerado de “padrão ouro”, ou seja, de alta confiabilidade, não foram repassados para a rede pública de saúde dos Estados e municípios pelas mais variadas razões, todas imperdoáveis diante de uma catástrofe que já matou quase 170 mil brasileiros.

Ao longo desses nove meses de pandemia, o Sistema Único de Saúde (SUS) realizou cerca de 5 milhões de testes RT-PCR, menos da metade, portanto, do que poderia ter realizado. Isso dá a dimensão da incúria e do descaso com o bem-estar da população.

Só esse lote de testes que jazem encalhados nos galpões da incompetência administrativa custou R$ 290 milhões aos cofres públicos. O prejuízo financeiro é enorme e grave por si só, caso os kits para os exames percam a validade como se prenuncia. No entanto, esse é um problema menor diante das implicações sanitárias da não realização desses milhões de testes. A se confirmar o perecimento de insumos tão importantes, jamais se saberá como teria sido a curva epidemiológica da covid-19 no País com muito mais pessoas testadas, que ações poderiam ter sido tomadas pelo poder público a partir de uma visão mais clara da evolução da doença e, o que mais importa, quantas mortes poderiam ter sido evitadas.

O descalabro administrativo e financeiro virou objeto de mais uma contenda entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores e prefeitos. Tanto um como os outros podem, eventualmente, auferir ganhos políticos com essa rinha descabida, a depender da direção dos ventos. Certo é o enorme dano causado à população por uma desarticulação que a um só tempo avilta o bom senso e afronta a Constituição.

O Ministério da Saúde diz que sua responsabilidade se resume à compra centralizada dos kits. Nas redes sociais, Bolsonaro afirmou que “todo o material foi enviado para os Estados e municípios. Se algum Estado ou município não utilizou, deve apresentar seus motivos”. Isto não é verdade. Se os exames estão encalhados em um galpão do governo federal, como podem ter sido enviados aos Estados e municípios, como afirma o presidente?

Os entes federativos, por sua vez, afirmam que os lotes de testes que lhes foram entregues pelo governo federal estavam incompletos, sem o material necessário para coleta de amostras e processamento dos resultados. Vale dizer, sem qualquer serventia. Os conselhos de secretários municipais (Conasems) e estaduais de Saúde (Conass) afirmaram que o Ministério da Saúde não entregou todos os kits de testes e equipamentos para automatizar a análise das amostras que havia prometido, haja vista que o contrato que permitia o fornecimento dos insumos foi cancelado pela pasta, sem explicações mais detalhadas.

O Ministério da Saúde informou que está em contato com os fabricantes dos kits de testes para estudar a viabilidade de estender a validade dos insumos. Mas esta possibilidade causa preocupação entre especialistas, pois poderia comprometer a acurácia dos exames. De qualquer forma, ainda que os fabricantes afirmem ser seguro estender o prazo de validade dos kits, um problema persiste: se até agora as três esferas de governo não foram capazes de se articular para testar a população, como confiar que serão capazes de fazê-lo nos próximos três ou quatro meses?

O presidente Bolsonaro já deu incontáveis mostras à Nação de que abdicou de seu dever de coordenar no âmbito federal as ações de combate a uma pandemia cuja gravidade ele é capaz de negar, contra todas as evidências científicas. É de esperar, pois, que o lixo seja o destino mais provável desses kits de testes para covid-19.

Tanta incompetência lança luz sobre o desafio de distribuir uma vacina para milhões de brasileiros em um futuro próximo. Oxalá União, Estados e municípios se entendam pelo bem dos brasileiros.

Perspectiva de vacina precisa ser aproveitada – Opinião | O Globo

Resultados dos testes de Oxford dão a Bolsonaro uma oportunidade para redimir parte de seus erros

Há luz no fim do ano. Se 2020 começou sob o espectro sombrio de uma nova doença, sobre a qual nada se sabia e que rapidamente se transformou na pandemia mais letal em um século, o ano termina com expectativas mais animadoras, ainda que sob os efeitos de uma nova onda de contágio da Covid-19.

As empresas Pfizer/BioNTech e Moderna anunciaram há poucos dias êxito nos testes finais de suas vacinas. Ontem foi a vez de a Universidade de Oxford trazer notícias boas sobre a vacina desenvolvida com a farmacêutica AstraZeneca, testada no Brasil em parceria com a Fiocruz. A chinesa Sinovac também prometeu para o início de dezembro os resultados de seus testes, parte deles a cargo do Instituto Butantan, de São Paulo.

Apesar de ainda persistirem dúvidas sobre a dosagem, a eficácia média verificada na última fase de testes da vacina da AstraZeneca/Oxford foi de 70%, superior ao patamar mínimo de 50% estipulado pelos cientistas para recomendar a aplicação. Se é notícia boa para o mundo todo, para o Brasil é melhor ainda. Foi essa a vacina em que o governo federal apostou todas as suas fichas — cegamente, diga-se. Pelos resultados divulgados, parece ter ganhado a aposta.

Em agosto, o Ministério da Saúde firmou um acordo de R$ 1,9 bilhão para a Fiocruz importar tecnologia e produzir a vacina numa fábrica que está sendo construída em Manguinhos, que deverá começar a operar em fevereiro. Levando em conta a aplicação de maior eficácia sugerida pelos testes (meia dose seguida de uma dose), a Fiocruz estima ser possível vacinar 65 milhões de brasileiros no primeiro semestre de 2021, outros 65 milhões no segundo semestre.

O resultado positivo é um motivo contundente para investir o que for necessário para acelerar a produção. Trata-se de uma vacina de custo baixo (inferior a US$ 3 a dose), fácil de fabricar e distribuir, pois pode ser armazenada em condições normais de refrigeração (entre 2° C e 8° C). Tais fatores facilitam a logística da vacinação num país continental. Outras vacinas certamente poderão fazer parte de um programa bem desenhado de imunização, que priorize os grupos mais expostos e sob maior risco, como profissionais de saúde, idosos, obesos, diabéticos ou hipertensos.

Um ponto de partida são os programas nacionais de vacinação já existentes há décadas. Os bons ventos que sopram da Ciência são também uma oportunidade para o presidente Jair Bolsonaro redimir ao menos parte da sucessão de erros que marcaram sua gestão da pandemia — e levaram o país à triste marca de 170 mil mortos, segunda maior do planeta. Com uma vacina 70% eficaz, seria necessário vacinar quase toda a população para o país ultrapassar o limiar de imunidade coletiva e garantir a erradicação do vírus. Daí a importância da vacinação obrigatória, proposta sempre rechaçada por Bolsonaro.

Por enquanto, por mais alvissareiras que sejam as notícias, nada muda em relação às precauções sanitárias para evitar o contágio. Ao contrário. Num momento em que a pandemia ensaia uma segunda onda no Brasil — o aumento na ocupação de leitos de UTI nos estados é evidente — , elas devem ser reforçadas. Qualquer vacina, incluindo a de Oxford, só deverá estar disponível no primeiro semestre do ano que vem — e só quem estiver vivo até lá poderá ser vacinado.

 Evidências de espionagem revelam hipocrisia da pressão dos EUA no 5G – Opinião | O Globo

Estudo mostra que Brasil usa há décadas sistemas vulneráveis à bisbilhotagem americana

Desde a década de 90 sabe-se que a suíça Crypto AG tinha ligações com a inteligência americana (a CIA chegou a controlar a empresa). Mesmo assim, o Brasil não parou de comprar seus sistemas de criptografia para proteger as comunicações das Forças Armadas. Há registro de negócios feitos até dezembro do ano passado. Espionagem é um item condenável, mas sempre presente no jogo das relações internacionais. E os americanos não deixam de lançar mão dela quando interessa, como mostram os grampos da NSA dirigidos ao Planalto no governo Dilma Rousseff.

Agora, um trabalho acadêmico revelado pelo GLOBO mostra que diversas aquisições militares brasileiras recentes foram expostas pelo sistema da Crypto. Mais essa evidência da vigilância americana sobre o Estado brasileiro revela o grau de hipocrisia da Casa Branca ao pressionar Brasília para que o país vete, por motivos de “segurança”, a tecnologia da chinesa Huawei na telefonia celular de quinta geração (5G).

Se tivéssemos um serviço de inteligência competente, teria ficado alerta quando a imprensa americana passou a publicar reportagens sobre a Crypto. Em 1995, o “Baltimore Sun” revelou vínculos dela com a NSA. Em fevereiro, o “Washington Post” relatou como ela passou às mãos da CIA, em sociedade com a alemã equivalente, a BND.

O mapeamento das relações entre a Crypto e o Brasil ao longo de décadas foi feito por Vitelio Brustolin, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e de Harvard, com Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Alcides Peron, da Universidade de São Paulo (USP).

Uma das aquisições recentes descritas pelos pesquisadores foi feita para o submarino Riachuelo, um dos quatro que o Brasil constrói com tecnologia alemã. As comunicações do Riachuelo, em testes de mar desde 2018, podem estar vulneráveis. Qualquer equipamento militar que pode ser rastreado perde eficácia como arma.

Para permitir a comunicação segura entre áreas sensíveis do Estado, seria necessário trocar os sistemas da Crypto. Do contrário, as Forças Armadas e o governo podem estar tão devassados como os argentinos na Guerra das Malvinas, quando os ingleses eram informados pelos americanos de toda movimentação bélica dos rivais.

Centrão expandido – Opinião | Folha de S. Paulo

Avanço de siglas do grupo dá sinal a Bolsonaro em 2022, mas arranjo é precário

Os sinais emitidos pelas urnas no primeiro turno das eleições municipais ainda estão sendo decodificados, mas uma constatação parece clara: o avanço das siglas do centrão fisiológico e seu entorno se deu num diapasão governista em espírito, por assim dizer.

Levantamento feito pela Folha mostrou, por exemplo, uma correlação direta entre um desempenho superior desses partidos em cidades que demandaram mais o auxílio emergencial da pandemia.

Nos 200 municípios com maior adesão à ajuda federal, Progressistas, Republicanos, PL, PSD e MDB angariaram 57% das vitórias. No conjunto das cidades brasileiras com eleição decidida em primeiro turno, o índice foi de 49%.

Com efeito, a esquerda, PT à frente, viu seu espaço sendo reduzido nesses locais mais necessitados.
Isso mostra o caráter governista de parte do voto brasileiro, reforçado neste pleito pelo índice de reeleições até aqui: 68% nas cidades que receberam mais auxílio, ante 63% no total dos municípios.

Isso não é exatamente uma boa notícia para Jair Bolsonaro.

O arranjo de poder montado em torno do presidente sugere mais a ação parasitária em relação ao poder dos partidos ligados ao Planalto —e aqui o MDB não se encaixa na definição precisa apesar de ter o líder do governo no Congresso— do que um mutualismo político.

A inexistência de uma agenda congressual do Planalto, que vê o ex-rei do centrão Rodrigo Maia (DEM-RJ) pautar o dia a dia na Câmara dos Deputados, exemplifica a falta de coordenação entre o governo e seus apoiadores nominais.

Com o apontado aumento da rejeição a Bolsonaro nas capitais, que sugere o que pode acontecer quando o auxílio acabar, e com o potencial recrudescimento da crise econômica, é plausível antever as siglas deixando os despojos que ora varejam para seu benefício.

Essa é uma chave para entender as chances de Bolsonaro na disputa da reeleição, em 2022.
Se atravessar o ano que vem de forma claudicante, cada vez mais amparado no binômio apoplexia pública e catatonia política, o centrão e suas adjacências tenderão a olhar para alternativas no que se convencionou chamar de centro e de centro-direita no país.

Mas se a economia não desandar e houver alguma racionalidade no esperado processo de saída da pandemia, hoje uma proposição algo panglossiana, Bolsonaro sempre terá consigo a máquina e seu poder de atração enquanto sacia o sistema político com migalhas.

Sob esse aspecto, as derrotas do presidente nos principais pleitos em que se envolveu parecem menos definitivas, embora revelem o humor de um eleitorado que, neste 2020, rejeitou o bolsonarismo.

Pandemia no futebol – Opinião | Folha de S. Paulo

Nova onda de Covid-19 também escancara a insanidade do calendário esportivo

Uma segunda onda de casos de Covid-19 atinge o futebol brasileiro. Depois de episódios de contaminação ocorridos no início da retomada das competições nacionais, contaram-se no fim de semana nada menos que 60 atletas afastados por testagem positiva na série A do Campeonato Brasileiro.

Chegou a 12, com isso, o número de clubes com casos da doença, num total de 20. Dois treinadores também contraíram o vírus.

Esse quadro trouxe novamente a campo o debate sobre os protocolos previstos pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a rigidez com que os envolvidos seguem as precauções sanitárias.

Um dos principais alvos de crítica é o fato de a entidade esportiva exigir testagem prévia para atletas, árbitros e comissões técnicas, mas não para outros profissionais presentes nos estádios, como jornalistas, funcionários e dirigentes.

Era evidente que o retorno dos torneios em meio à pandemia trazia riscos —e muitos questionaram a decisão. Prevaleceu, contudo, inclusive no plano internacional, o entendimento de que seria aceitável retomar os certames sem a presença de público e com a adoção de medidas preventivas.

O futebol, porém, à diferença do que aconteceu com o basquete profissional norte-americano, não foi nem poderia ter sido encapsulado numa bolha protegida do convívio social. Os participantes das equipes submetem-se a intensa rotina de viagens, transitam por aeroportos, hospedam-se em hotéis e contam com dias de folga.

O que ocorre no meio futebolístico, portanto, é o que se vê na sociedade, talvez em movimentos mais bruscos devido à proximidade entre os atletas nos treinos e jogos.

Os atropelos gerados pela pandemia também ressaltaram aspectos negativos da gestão da modalidade, às voltas com práticas atrasadas que favorecem interesses políticos e prejudicam jogadores, torcedores e as próprias competições.

É inaceitável, por exemplo, que a CBF, com a aquiescência dos clubes, continue a insistir num cronograma saturado que nem mesmo prevê a paralisação das disputas durante as datas Fifa —reservadas a partidas das seleções nacionais.

É difícil, nesse ambiente refratário à modernidade, crer que os gestores sejam capazes de aprender com os erros. Se forem, poderiam ao menos aproveitar a experiência traumática e confusa ora em curso para promover uma reforma profunda no calendário.

É preciso um trabalho de longo fôlego contra o racismo – Opinião | Valor Econômico

O assassinato de Freitas revela que parte do país deu mais um passo em direção à barbárie

O espancamento brutal, até a morte, de João Alberto Silveira Freitas, por dois seguranças de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra, diz tudo sobre o racismo à brasileira. É uma violência silenciosa, perene, prestes a explodir em episódios animalescos como o que ocorreu, mais uma vez, em um hipermercado do Carrefour. O assassinato de Freitas revela que parte do país deu mais um passo em direção à barbárie. Havia 15 pessoas presentes, e uma delas, fiscal da empresa, filmou impassível o desenrolar do crime. Já sem ação, o negro foi espancado por mais 4 minutos, até tirarem-lhe a vida. A impunidade de ataques a pretos e pobres é o manto de proteção para a ação violenta dos seguranças.

A atitude negligente do Carrefour, e de outros hipermercados, tornou o ato de ir às compras, para negros, uma atividade de alto risco, dada a boçalidade das pessoas pagas para manter “seguros” esses locais. A morte de Freitas em minutos foi associada a outros atos recentes de força bruta contra negros, até mesmo inválidos -jovens chicoteados, torturados com choque elétrico, espancamento com barras de ferro de animais. O tratamento que é dado aos negros, em relação a brancos, é diferenciado. A capacidade de reação legal do agredido é baixa e sujeita, na largada, ao descrédito. Quase sempre entra na delegacia já como suspeito, não como vítima.

Há um milhão de pessoas trabalhando em empresas de segurança, o equivalente a três vezes o efetivo das Forças Armadas do país. Um bom número é egresso das polícias militares ou civis e sua convivência com a força policial, pretérita ou presente, já configura um salvo conduto diante de atos aberrantes que eventualmente cometam. O Rio Grande do Sul, onde Freitas foi morto, é um inferno para negros, segundo as estatísticas policiais. Pelo Anuário de Segurança Pública, em 2018 foi o Estado onde latrocínios, homicídios e estupros diminuíram, menos as notificações de injúria racial, que somaram um quinto das 7.616 denúncias feitas formalmente em todo o país.

O Carrefour se vê diante da questão há anos, mas não teve êxito em evitar que o tratamento dado por homens pagos pela empresa a clientes seja mortal. Desta vez, além de funcionários do hipermercado presenciarem o ocorrido, uma outra funcionária aparece intimidando testemunhas do crime. Não parece haver sinais de uma “cultura” na empresa que trace uma linha vermelha do que é radicalmente proibido e inculque em todos os empregados a premissa de que todos os clientes devem ser tratados da mesma forma, com educação e respeito, não importa quanto dinheiro tenham no bolso.

Como sempre, uma ilegalidade nunca vem desacompanhada. O Carrefour contratou uma empresa que tem policiais na ativa como sócios, o que é vedado por lei - e não está sozinho nisto. Pela Constituição, PMs são proibidos de acumular cargos remunerados. O Grupo Vector presta serviços ao Extra (onde houve relatos de torturas em 2019), Atacadão e Walmart, entre outros clientes do comércio de varejo. O grupo é o responsável pela seleção, formação, treinamento e atos de seus funcionários.

A defesa de Giovane Gaspar da Silva, um dos seguranças presos pelo assassinato, seguiu o roteiro previsível - difamar a vítima. “Suspeita-se de que estava sob efeito de entorpecentes”, disse o advogado David Leal. Depois, um espancamento sem reação da vítima por 4 minutos não tinha, segundo ele, a intenção de matar. A defesa levantou ainda a hipótese de um ataque cardíaco, e não asfixia, como indica a análise inicial da perícia. Se não existisse um vídeo mostrando tudo, essas lorotas teriam chance de prosperar.

Os números não deixam dúvida sobre o racismo que permeia o assassinato de Freitas e muitos outros. Três quartos das mortes violentas no país têm negros como vítimas, apesar de somarem 56% da população. Dois terços dos detentos são negros, proporção idêntica à que povoa o exército de 12,7 milhões de desempregados. Só uma em cada três pessoas que concluem a faculdade é negra, e pouco mais de uma a cada dez as que exercem cargos de comando nas empresas.

O assassinato bárbaro de Freitas deveria galvanizar uma reação de empresas, Ministério Público, governadores, prefeitos e entidades da sociedade civil para um trabalho de longo fôlego contra o racismo. É importante concluir a dura tarefa apontada por Machado de Assis, um dos maiores escritores do país: “Emancipado o preto, resta emancipar o branco”.

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