domingo, 4 de abril de 2021

Cacá Diegues - Cesta da Paixão

- O Globo

Hoje, em vez de refletir sobre o abstrato, temos a televisão e a internet que nos dão a conhecer o mundo

Na casa de meus pais, a Semana Santa era uma oportunidade sagrada de refletir sobre nós mesmos e o mundo podre e cruel à nossa volta. Tratava-se de adquirir um conhecimento que os Santos, mas sobretudo Jesus Cristo, nos ofereciam para que soubéssemos o que ainda não sabíamos sobre o sofrimento e o Paraíso a que ele podia nos levar. Não era permitido abrir a boca, éramos obrigados ao silêncio absoluto durante toda a Sexta-Feira da Paixão, refletindo sobre a morte e a salvação, sobre nós mesmos e a dor. Devíamos sair da reflexão com uma cesta nova de conhecimentos para a nossa vida, para que ela fosse de fato santa. Hoje, em vez de refletir sobre o abstrato, temos a televisão e a internet que nos dão a conhecer o mundo.

Essa história, por exemplo, eu colhi no Youtube. Me distraiu um pouco da miséria política desses dias, me deu uma certa esperança na invenção humana. Manuel da Silva é um português de 76 anos que vive em Cedral, cidade de 12 mil habitantes, no litoral do Maranhão. Manuel, que todo mundo chama de Seu Maneles, antes de vir para o Brasil passou alguns meses com índios na Guiana Francesa, com os quais aprendeu a usar arco e flecha, a construir embarcações de madeira e a viver nu. Mas não se trata de viver nu como força de expressão, vestido com um shortinho ou uma cueca meia-bomba. É nu mesmo, de cabo a rabo.

Quando é necessário, Seu Maneles passeia assim pela cidade, só botou roupa e cobriu o corpo uma vez, quando teve que ir, por necessidade, à Polícia Federal e à Capitania dos Portos num mesmo dia. Aí temeu que os homens da lei não entendessem seus hábitos e vestiu a única roupa que possui, uma bermuda creme meio sem graça e uma camiseta colorida que guarda desde que ainda morava em Portugal.

Ele vive, na maior parte do tempo, entre as duas propriedades que ele mesmo construiu, uma ao lado da outra. Numa, aberta e arejada, Seu Maneles passa os dias trabalhando, a construir catamarãs e barcos que os índios lhe ensinaram a fazer. A outra é a casa onde mora, feita de madeira, com dois andares, construída por ele à beira de um riozinho de nada, perto do mar. Para ela, volta todo dia antes do fim da tarde pela janela do segundo andar, com a ajuda de uma corda grossa que usa com rara e surpreendente habilidade para a idade que tem. E ali permanece com os membros de sua família.

Nosso herói já passou por 5 casamentos, dos quais tem 9 filhos e 27 netos, todos acostumados com a nudez do patriarca, a quem estão sempre visitando ou simplesmente aparecendo para morar com ele. Uma das meninas, muito jovem e bonitinha, não descobri se filha mais moça ou neta mais velha, declarou à jornalista do Youtube que tem muito orgulho dele viver como bem entende, sem dar satisfação a ninguém, “sem se importar com o que a sociedade vai dizer”.

Seu Maneles explicou que, quando tem necessidades, faz o que precisa por ali mesmo, nas trilhas do mato em torno da casa. Ele diz que se limpa com folhas à mão, que são muito mais eficientes do que os papéis industriais de qualidade duvidosa, sempre “se rasgando e cheios de furos”. Logo que chegou ali, ele andou se equivocando com a qualidade dessas folhas que não conhecia e uma delas acabou lhe deixando “com o rabo queimado por um tempo grande demais”.

Ah, se os constantemente trocados ministros do capitão tivessem que fazer esse teste preliminar, saberíamos quem melhor aguentaria e por quanto tempo a queimação de fundo! Seria uma excelente experiência cívica.

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