domingo, 4 de abril de 2021

Sérgio Augusto - Paris o sesquicentenário da histórica comuna

- O Estado de S. Paulo

 Ela foi a réplica da arraia-miúda à revolução burguesa de 1789, que alguns confundem com as agitações de 20 anos antes

O delegado do Dops quis saber se eu era comunista. “Não”, respondi. “Gostaria de ter sido communard”, complementei. O beleguim, apesar de visivelmente desconcertado pelo complemento, não deu o braço a torcer, e foi dormir sem perguntar e muito menos saber o que diabos eu queria dizer com “comu...comunar”. Se mais instruído e safo, teria perguntado: “E por que não foi isso aí?” Ao que eu responderia: “Porque não tinha idade.”

Não tinha mesmo. Um século então nos separavam, amime ao delegado, da insurreição dos communards parisienses, em 1871, a cujo sesquicentenário, rolando até o dia 28 de maio, nossa mídia não tem dispensado a devida atenção.

Pois é, os franceses brindando ao aniversário da mais espetacular rebelião popular europeia do século 19 e os militares daqui encanados em mais um aniversário da maior desgraça por eles infligidas ao País no século passado: o golpe de 64, que, aliás, o novo ministro da Defesa prefere chamar de “movimento”, eufemismo combinado entre seus pares para maquiar a história.

Maquiar, perdão, é outro eufemismo; a palavra certa é falsificar.

Sou velho entusiasta da Comuna de Paris, que foi a réplica da arraia-miúda à revolução burguesa de 1789. Alguns a confundem com as agitações sociais de 20 anos antes, celebrizadas por Marx (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) e Flaubert (A Educação Sentimental). Compreende-se. A sarrafusca de 1848-51 foi uma espécie de trailer ou ensaio geral do que explodiria em 18 de março de 1871.

Lembrei-me da Comuna de Paris ao ler que, na manhã do último dia 23, motoboys e motoristas de aplicativo, auto identificados como “Frente Povo Sem Medo ”, interditaram as avenidas João Dias e Marginal Tietê, na capital paulista, exigindo auxílio emergencial decente, vacinas já e o fim da barbárie imposta ao Brasil por Bolsonaro.

Povo sem medo e decidido era o parisiense. Melhor dito, a classe operária de Paris da segunda metade do século passado. Derrubaram o governo, ocuparam durante 72 dias acidade previamente evacuada, e implantaram o primeiro autogoverno de caráter proletário e popular, em plena ascensão do capitalismo e floração dos ideais socialistas. Derrotado na guerra contra a Prússia e com tropas de ocupação rufando tambores por todo canto, o caótico Estado francês caiu nas mãos de trabalhadores e camponeses, as classes sociais mais a perigo, sempre, daquela vez apoiadas por setores da burguesia insatisfeitos com o governo de fachada de Napoleão 3º.

Sem medo, afrente popular impôs uma série de medidas de tremeras bases de qualquer república. De cara, adotou novamente o calendário revolucionário implanta doem 1793 e aboli doem 1805. (Por ele, os parisienses estariam agora em pleno germinal, não na primavera). Separada do Estado, a Igreja deixou de ser subvencionada pelo erário. Espólios sem herdeiros passaram a ser confiscados pelo Tesouro.

Tem mais: apena de morte foi abolida, assim como o serviço militar obrigatório, dissolveu-se o exército regular, instituiu-se a igualdade entre os sexos, extinguiu-se o trabalho noturno. Residências vazias foram desapropriadas e reocupadas, e em cada residência oficial foi instalado um comitê para organizara ocupação de moradias.

Ainda não acabou. Todas as finanças foram reorganizadas, incluindo os correios, a assistência pública e os telégrafos. A educação tornou-se gratuita, secular e compulsória. Além de revitalizar o ensino noturno, a Comuna adotou turmas mista sem todas as escolas e duplicou o salário dos professores.

Todos os descontos nos salários foram abolidos e a jornada de trabalho reduzida, mas não às oito horas por muitos pleiteadas. Os artistas passaram a auto gerenciar os teatros e editoras. Oficinas que estavam fechadas foram reabertas para instalação de cooperativas.

Casamentos, testamentos, adoções e a contratação de advogados deixaram de ser cobrados. O monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os honorários também viraram letra morta, e o cargo de juiz tornou-se eletivo.

Qualquer estrangeiro podia fazer parte da Comuna, com igualdade de direitos. Nela havia belgas, italianos, húngaros, poloneses, e outros mais, da Europa e do resto do mundo, teria atraído se tivesse durado mais tempo ou se consolidado como um Estado permanente.

Porque o utópico regime da Comuna não vingou? Por inexperiência dos communards, que nem tiveram tempo de estendê-lo e testá-lo no resto da França, e por erro sem questões estratégicas envolvendo a proteção d acidade contra as tropas de Adolf Thiers, comandante do poder estabelecido, em seguida reforçadas por pelotões prussianos. O imaginário ocupou-se menos da Comuna do que se podia esperar. Os personagens da novela Bola de Sebo, de Guy de Maupassant, filmada algumas veze seque até um western (No Tempo das Diligências) inspirou, não fugiam de Paris e seus communards mas de Rouen e das tropas invasoras. De todo modo, Maupassant retrata à perfeição os burgueses que, na mesma época, se escafederam da capital francesa, com medo da plebe empoderada.

O russo Ilya Ehrenburg escreveu um romance ambientado na Comuna, O Cachimbo do Communard, que também virou filme, na Rússia. Os russos sempre foram, et pour cause, fascinados pela Comuna de Paris. A dupla Grigori Kozintsev-Leonid Trauberg dirigiu um dos dois melhores filmes sobre a Comuna, A Nova Babilônia (1929). Ooutroé La Com mune( Paris ,1871), do inglês PeterWatkins.

Curiosamente, o personagem egresso da Comuna e em fuga dos prussianos mais conhecido do cinema ainda é a mestre-cuca Babette, que se exilou e deu bem numa cozinha da Dinamarca.

Nenhum comentário: