domingo, 4 de abril de 2021

Míriam Leitão - O governo acabou, mas permanece

- O Globo

O governo Bolsonaro acabou, mas ainda não terminou. Foi o que me disse uma fonte, um pouco antes de eu sair para tomar a primeira dose da vacina. Receber o imunizante virou festa, emoção, defesa de valores, bandeira. Não há o que Bolsonaro faça que apague as muitas gravações que existem mostrando seus ataques à vacina. Sua tardia rendição é inútil. Os últimos tempos têm sido dilacerantes. O gráfico das mortes é uma exponencial. Numa semana de muitas emergências e dores, o presidente mandou celebrar a ditadura, demitiu os chefes militares, combateu, de novo, as medidas de proteção.

O fim do governo se vê por todos os lados. Ele virou um peso morto. O desmonte na área econômica é visível. Na quinta-feira demitiu-se o presidente do conselho do Banco do Brasil, Hélio Magalhães, e foi acompanhado pelo conselheiro José Monfort. Já saiu muita gente. Quem se enganou com esta administração o fez porque quis. O presidente intervém em qualquer setor da área econômica ou empresa. O ministro Paulo Guedes não se opõe. Ele disse, segundo o blog de Tales Faria, do UOL, que já sabia das substituições (na Petrobras e no Banco do Brasil). “O presidente não estava satisfeito e é um direito dele.” Guedes mimetiza a visão de Bolsonaro: acha que ele foi eleito rei absolutista e não presidente temporário de uma república democrática e federativa. O ministro fez feia acusação a Roberto Castello Branco. “No caso do Castello, ele, na verdade, vinha segurando aumento nos preços dos combustíveis. É claro que, quando soube que ia sair, começou a realinhar os preços.”

O governo acabou, mas o fato de não ter terminado pesa toneladas sobre o país. O Ministério da Educação está à deriva, ajudando a passar a boiada de absurdos, conforme contou Renata Cafardo, no “Estado de S.Paulo”. Neste momento de devastação na educação, o que o país mais precisava era de ter um ministro na Educação. Não tem. As crianças e jovens estão pagando um preço intolerável. O quarto ministro da Saúde é melhor do que o terceiro, o que é fácil, mas se tentar ser eficiente, será sabotado como o primeiro. Há os ministérios que trabalham com a pauta de destruição, como o Meio Ambiente. No Itamaraty, se o inexperiente ministro Carlos Franco França seguir o cerimonial, já estaremos no lucro.

O pior Orçamento desde a estabilização não surgiu por acaso. Teve contribuição do executivo e é um dos sinais de um governo disfuncional. O problema é que para consertar será preciso um coquetel de remédios: vetos em algumas partes e emendas, cortes, contingenciamentos e um PLN para recompor despesas obrigatórias. Se for sancionado como está e executado será pedalada. E tem que ter a mesma punição. Já há servidores temendo a inabilitação para a função pública. Neste fim de semana o TCU está debruçado sobre ele. Com lupa.

As Forças Armadas foram atropeladas na semana passada com todo o desrespeito possível. O país também foi. Bolsonaro disse que o general Braga Netto “sabe os motivos e morre aqui”. A democracia exige transparência nos atos do setor público. O “morre aqui” é normal numa ditadura, aquele regime que Braga Netto acha que precisa ser “celebrado”.

A democracia, sim, merece ser celebrada. Ela estabilizou a moeda consertando a bagunça hiperinflacionária deixada pela ditadura, resolveu a dívida externa, acumulou reservas, criou o SUS, universalizou o ensino fundamental, colocou na Constituição que os indígenas têm direito à sua identidade, cultura e idioma, abriu as portas das universidades públicas para negros e criou uma rede de proteção social.

Acordei animada na sexta-feira. Passei minha camisa escrito “Vacina sim”, coloquei uma N95 e fui para o posto com alegria juvenil. Tomei a Coronavac. O ato da vacinação vai muito além do que seria em tempos normais. Bolsonaro fez ataques sórdidos contra a saúde, a ciência, as vacinas, os governadores e prefeitos. Promoveu aglomerações, estimulou a exposição ao vírus, fez apologia da ditadura e ameaças à ordem constitucional. Tudo isso transformou a vacina num ato de resistência. Já seria excelente ter essa resposta ágil e eficiente dos cientistas. Mas, no Brasil, ela virou proteção de tudo o que amamos. Virou defesa da vida.

Nenhum comentário: