Mora
no Museu de Israel, em Jerusalém, a obra “Angelus Novus”, criada por Paul Klee
em 1920. Há quem veja no célebre desenho comprado no ano seguinte pelo filósofo
alemão Walter Benjamim uma melancólica representação do eterno ciclo de
desesperança da história humana. Klee tinha uma visão metafísica da realidade,
e seu anjo também pode retratar nossa Páscoa amarga de 2021 — nada a celebrar,
tanto a prantear. Nas palavras de Benjamin, que se suicidaria ao tentar fugir
do nazismo em 1940, o quadro retratava o anjo da história. “Sua face está
voltada para o passado... gostaria de permanecer aqui, despertar os mortos e
tornar inteiro o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do paraíso; ela
aprisionou com tanta violência as asas do anjo que ele não pode mais fechá-las
e é impelido para o futuro, sem possibilidade de resistência... Essa tempestade
é o que chamamos de progresso”, escreveu.
Também nós não sabemos ressuscitar os que perdemos. E quem partiu no arrastão fúnebre da pandemia nem sequer pôde se despedir dos presentes. Nos tornamos órfãos coletivos de desconhecidos, de pais e familiares, amigos, colegas, vizinhos; de toda uma parte da humanidade que vivenciou um mesmo mundo, um mesmo tempo de história. À medida que as perdas se sobrepõem, uma espécie de “escolha de Sofia” invertida despedaça os que ficam: por quem chorar primeiro — pelo pai ou pelo irmão? Pela amiga querida ou pelo vizinho de todas as horas? A própria natureza cambiante da memória e das emoções, quando atropelada e sem tempo para tomar fôlego, tem poder anestesiante de um luto contínuo. Um luto profundo e silencioso para não atrapalhar os ainda à nossa volta.
“Em
março de 2021, o Brasil pode ter tido mais mortes do que nascimentos... Se isso
não assusta você, nada irá!”, avalia o neurocientista Miguel Nicolelis. Em sua
nova coluna em áudio para o diário “El País”, Nicolelis projeta um total de
meio milhão de mortos para julho e a possibilidade de um colapso funerário,
caso não sejam tomadas medidas drásticas de lockdown. (Na verdade, o colapso já
parece estar em curso). Um sábio do passado tinha razão: nossa ansiedade não
esvazia o amanhã de sua dor, apenas esvazia o nosso hoje de sua força.
Muitas
décadas atrás, uma edição da extinta revista “Oxford Today” publicou longo
artigo que começava com uma pergunta: você é capaz de lembrar onde você estava
no dia da morte do grande escritor Aldous Huxley — autor, entre outros, da
distopia “Admirável mundo Novo”? Ou de se lembrar do dia da morte de C.S.Lewis,
conceituado pensador britânico? Não? Se você tinha, à época, mais de 5 anos de
idade, respondeu errado. Ambos morreram no mesmo 22 de novembro de 1963 em que
o mundo paralisou ao ouvir que John F. Kennedy fora assassinado.
Os
três citados habitavam mundos sociais e mentais remotos, cada um investindo
energias em esferas distintas. Mas as mortes dos dois primeiros não tiveram
direito a espaço. O “New York Times” precisou de três dias para noticiá-las.
Lewis morreu nos braços do irmão e teve enterro solitário. “O que você vê e
ouve depende em grande parte de onde você finca seus princípios. Depende do
tipo de pessoa que você é”, sustentava ele. Huxley faleceu num quarto de
hospital de Los Angeles após receber, a seu pedido, uma última injeção de LSD
administrada pela segunda esposa. Ao sair do quarto, ela conta ter deparado com
médicos e enfermeiras paralisados diante da TV ligada na saga J.F.K. Deve ter
desistido de informá-los sobre a morte do marido.
A
pandemia atual não tem um herói de impacto universal, pranteado planeta afora e
capaz de apagar falecimentos coincidentes. Tem pior, muito pior: tem quase 3
milhões de enterrados (sem contar as subnotificações, para as quais acordaremos
algum dia) que deixam uma imensidão de vazio silencioso e eterno. Cada um
desses quase três milhões que se foram tinha uma dimensão afetiva única, maior,
para quem os pariu e/ou amou.
Esta
Páscoa é propícia para lembrar que a vida não é uma luta contra a maldade,
contra o drama e o sofrimento, e sim uma luta contra a ausência e o olvido
(adoro essa palavra). Como escreveu o francês Jean-René Huguenin, a alegria que
buscamos está justamente na presença física e emocionante de alguém, ou de
algo. Algum dia a alegria haverá de voltar, embora tudo indique que o Brasil
será um dos últimos países a desfrutar esse privilégio. Restam-nos a
imaginação, a poesia, a natureza pela janela. E a música. “A pele é o maior
órgão do nosso corpo e, com a chegada da Covid-19, fomos roubados da alegria
que sentimos ao toque humano”, disse o violoncelista Yo-Yo Ma ao levar seu
instrumento de cordas para a sala onde se vacinou. “Você não pode se abraçar,
enlaçar as mãos. Mas a música e os sons conseguem mover as moléculas do ar e
fazem vibrar sua pele. É a coisa mais próxima do tocar humano.”
Sentado
numa cadeira de plástico encostada à parede, o músico presenteou o posto
vacinal de Pittsfield, em Massachusetts, com a “Suite nº 1 em sol maior”, de
Bach. Assim, por algum tempo, preencheu o vácuo de conexão humana entre os que
ali estavam. Deve ter sido sublime.
Pelo menos hoje não é preciso citar o abutre nacional. Ele não merece espaço.
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