No meio tempo entre a coluna anterior e essa, Jair Bolsonaro, ao lado de oferecer, ao Presidente da Câmara dos Deputados, a secretaria ministerial do seu governo (mais um anel que talvez desejasse manter nos dedos), perfilou - ou ajustou controles sobre - os Ministérios da Justiça e da Defesa, a AGU e a Polícia Federal, além do que já tem sobre os órgãos de informação. Se houvesse conseguido emplacar comandantes amigos nas forças armadas, estaria completo o desenho de um misto de bunker e trincheira para uma luta decisiva que acalenta em seus delírios. Restaria conseguir produzir a centelha de desordem pública que persegue, meses a fio, para justificar uma virtual proposição de estado de sítio, ou algo equivalente, com respaldo de comandos militares. Hoje o Congresso não o concederia. Mas num hipotético cenário de violência miliciana nas ruas, insubordinação nas PMs combinada com caos sanitário, povo amedrontado, pedindo ordem, o Congresso e o STF poderiam ficar emparedados. Assim parecem pensar os que respaldam os movimentos de Bolsonaro, ou os que hesitam em repeli-los.
O
plano de Bolsonaro não pode mais ser segredo para ninguém que observe a cena
política e social. Pode dar certo, em algum momento? Especialistas em assuntos
militares afirmam que não e devem ser escutados com o respeito e a reverência
que merecem. Intuo, porém, que não sabemos, apesar da reiteração obsessiva de
uma mesma tática comprometer a estratégia bolsonarista, que se torna previsível
pelas defesas adversárias, marcação cerrada feita por instituições que ele está
obrigado a respeitar, mas ataca e organizações da sociedade que ele tem
obrigação de governar, mas desgoverna.
Seu
fracasso na área militar é, como sabemos, avaliação praticamente unânime. A grande
imprensa, assim como a pequena, respalda a tese de que os militares cumprem seu
papel institucional e ponto. Uma pergunta resta sem resposta: quem afinal escolheu
(refiro-me a pessoas de carne e osso e não a entidades sobre-humanas que
agiriam sozinhas) o novo comandante do Exército? Bolsonaro é que não foi. Interditaram-no
numa prerrogativa sua? O desfecho não apenas revela que o capitão foi “contido”
pelos generais na ativa, mas o desmoraliza e o leva a ver estrelas, mostrando quem
manda nessa seara. Pode-se chamar de autonomia o que parece mais soberania da
corporação na designação da sua cúpula? Penso que é complicado interpretar o
ocorrido como mero movimento de despolitização e afastamento das FFAA da política.
Pedindo vênia aos especialistas, suspeito que possa ser meia verdade persuasiva.
É
verdade que a cúpula militar reagiu à politização tentada por Bolsonaro. Mas de
onde provém a convicção de que, ciosa da profissão, descarta assumir qualquer
atitude política? É obvio – e não precisa entender de militares para admitir - que
faltam sintonias materiais e mentais entre, por exemplo, os contextos nacional
e mundial de hoje e o do instável período que foi da promulgação da
Constituição de 1934 ao autogolpe do Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas.
O contraste de época desaconselha analogia explícita entre a postura atual da
cúpula da hierarquia militar e o antigo lema do General Góis Monteiro que, em
vez de política “no exército”, preconizava, então, a política “do
exército".
Golpe
militar não esteve, pois, nem está na pauta das especulações razoáveis. O que
causou receio, nessas duas últimas semanas, assim como em outros momentos,
durante o atual governo, foi a hipotética chance de um autogolpe com respaldo
militar, baseado num cenário de desordem e violência fomentadas. Essa nuvem dissipou-se, no momento. Mas não é
irrazoável observar que ganhou potência e visibilidade uma expansiva política
corporativa dos militares, alimentada pelo governo Bolsonaro e traduzida em fortes
pressões orçamentárias. Conexões entre isso e a aproximação de uma eleição
presidencial, no bojo da qual se discutirá prioridades em ambiente de grave
crise social não devem ser subestimadas.
É nesse contexto que é relevante interpretar a nota do agora ministro da
Defesa, Gal. Braga Neto, publicada na véspera da data do golpe de estado de
1964, a título de celebrar seus 57 anos.
Braga
briga com a História quando interpreta o período de 1964 a 1979 como de
pacificação nacional. Afirma que um movimento
de cunho popular depôs um governo ligado a uma ideologia violenta e que em
seguida as forças armadas foram chamadas a pacificar e reconstruir o país. Levaram
15 anos fazendo isso até que o pacto da anistia, de 1979, teria dado maioridade
democrática ao país. Inegável o caráter pacificador daquela lei e seu papel
indutor da transição democrática que se seguiu, por uma década. Mas na
historiografia de Braga, o general Figueiredo não foi o último
general-presidente num regime autoritário, mas o primeiro presidente dessa
democracia em novo patamar. O marco inaugural desse patamar é a ascensão do seu
governo, não o colégio eleitoral de 1985, muito menos a Carta de 88.
Está,
portanto, claro, que não me refiro à discussão sobre 1964, especificamente.
Seria malhar em ferro frio, pois é sabido que os militares, em geral, não
admitirão que foi um golpe de estado. Não tenho quanto a isso, preocupação
historiográfica, muito menos doutrinária, mas política. Uma coisa é a polêmica
sobre 64. Muitos liberais apoiaram e participaram do movimento. Foi um golpe,
mas não estava escrito nas estrelas que ia dar em ditadura, como deu. Outra coisa é celebrar a ditadura que ocorreu
por opção política, inclusive sua radicalização, depois de 1968. A nota de
Braga chama essa noite quase fascista de pacificadora. A nota está se
identificando não com as forças armadas, genericamente, mas com a “linha dura”,
para a qual 1968 foi continuidade natural e necessária de 1964.
Essa
narrativa é politicamente inaceitável por democratas porque não é só erro
historiográfico. Prevalecendo, apontaria a uma negação da política que
construiu a democracia que temos. Como sabemos e sentimos, com a eleição de
Bolsonaro os fantasmas de 1964 voltaram a estar presentes, não importa se são
delírios. Quando fantasmas guiam pessoas e as fazem se posicionar contra ou a
favor de algo relevante, eles passam a compor uma realidade em aberto,
sinalizando que o julgamento da História não está tão fechado assim. A eleição
de alguém como Bolsonaro, dizendo abertamente o que disse na campanha, sinaliza,
ela mesma, algo diverso de um assunto encerrado.
Penso
que mesmo a omissão diante dessa narrativa já é um equívoco. Chamar essa
cantilena extremista de moderada é equívoco maior ainda. Há como abordar esse
ponto de modo prudente, afirmando que o marco inaugural, jurídico e político,
da nossa democracia é a Carta de 88, sem com isso desqualificar a importância
da anistia para que essa obra se tornasse concreta. Imprudente é nos acomodar a
uma conveniência tática que, nesse caso, levaria a sociedade para longe do seu porto
seguro, que é a defesa intransigente da democracia, não deixando sem resposta
qualquer tentativa de usar esse termo para se referir ao que, de fato, foi ditadura.
A democracia vive de suas instituições, de seus procedimentos e também do grau
de crença, de convicção democrática da sociedade. Esse governo - e não apenas
Bolsonaro - tem rebaixado esse grau, borrando as fronteiras entre ditadura e
democracia. Essa nota foi mais um ato dessa sabotagem, dissimulado por um
palavreado educado e por um verniz racional que não deixam de merecer
reconhecimento, em meio à barbárie nossa de cada dia. Mas não podem iludir.
É
fato que, depois dos fatos da última semana, o rio ficou mais navegável. Então,
não vai ter golpe de qualquer espécie. Ficamos combinados assim.
Noves
fora conversa de golpe, há um bolo fermentando contra a impolítica do presidente
e ainda não dá para saber seu sabor. Dá para ver, porém, que agora a coisa anda
em novos trilhos. Em vez de proposições de impeachment e CPIs, feitas
por parlamentares ou grupos isolados e não previamente articuladas a contento, há
um coro externo crescente pressionando o Congresso para que tome providências,
mas ninguém se adianta dizendo quais seriam elas. Isso deixa rédeas sob manejo das
suas lideranças, para negociarem e resolverem. Se e quando a "providência"
vier à tona, já poderá ser na forma de ação concreta. Em certos momentos de
alta na temperatura política, não se pensa tanto em risco de golpe quanto numa contagem
regressiva para lançar Bolsonaro ao espaço. Como? Passagem pacífica do bastão ou guerra do fim
do mundo? Mal comparando, entre um e outro extremo, vamos ver se Bolsonaro, que
fala ao mesmo tempo como proclamador de uma república particular e refundador
de uma imaginária ordem passada, vai concluir sua farsa simulando Deodoro ou Conselheiro.
A
jornalista Rosângela Bittar especulou sobre uma etapa intermediária antes da “solução
final” da farsa. A elite política da
democracia representativa conserva-se atenta para preservar regras e limitações
de horizonte do jogo político. Traduz para um contexto democrático um saber
herdado de outros tempos. O mineiro Rodrigo Pacheco anda ensaiando a performance
de um Campos Sales do sufrágio universal.
A
recente reinserção de Lula no embate político direto, mergulhado na arena
plebiscitária que é a praia que ele disputa com Bolsonaro, adicionou um
fermento potente ao bolo. Em terreno análogo, peças publicitárias difundidas em
rede têm produzido motes e bordões, batendo na carestia, no desemprego e na
tragédia sanitária e tratando com humor e ironia o negacionismo e o nepotismo
presidencial. O Congresso, dessa vez, apareceu como propositor e autor do
auxílio emergencial. Bolsonaro e seu governo, até aqui, não contabilizaram
lucros políticos, apenas responsabilidade pelo valor irrisório. O meio político
- partidos e lideranças que vão de Pacheco, FHC e Temer, até Lula, passando
pelos governadores e pré-candidatos - está empenhado nas vacinas, tendo esse,
felizmente, se tornado um campo de cooperação, embora tensa, com o governo
federal. O centrão pressionou e derrubou Pazuello, tentou emplacar uma ministra
de fato e deu tom de última chance quando o presidente recusou e escolheu
outro. E o Judiciário não perde chance de estreitar o espaço de Bolsonaro.
Tudo
isso ocorre e entra aos poucos em catalisação. O conjunto produz efeito, tanto
que a rejeição a Bolsonaro e a desaprovação a condutas do seu governo crescem
continuamente, consistentemente, embora de modo incremental. Isso é comum em
democracias, regimes políticos em que as políticas públicas dependem de
percepções contraditórias do conjunto de uma sociedade complexa e não apenas
dos seus segmentos mais informados, politizados, organizados e, por isso,
mobilizados e influentes.
Por
outro lado, como o ensaísta Luiz Sergio Henriques bem frisou em artigo recente,
um político como Bolsonaro sempre tem uma fonte inesgotável de recursos
retóricos, porque não tem compromisso algum com a realidade e sequer com o que
ele próprio disse ontem, quanto mais com o que se possa falar e fazer contra
ele, hoje ou amanhã. Seu ativismo é e será um dado da realidade, mesmo se e quando
ele estiver a minutos da derrota final. Jamais o veremos se calar ou passar
recibo de derrotado. Foi assim com Trump, com ele tende a ser também.
*Cientista político e professor da UFBa
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