O
abuso econômico das patentes deve ser encarado como questão de Estado
O
Senado Federal vem discutindo, acertadamente, medidas que alteram a Lei de
Propriedade Industrial na direção de uma nova agenda global. Pretende-se
promover maior escala de vacinação para enfrentar o novo coronavírus a partir
da flexibilização dos direitos de patentes. Trata-se de uma decisão relevante,
pois os países em desenvolvimento vêm encontrando dificuldades no acesso às
vacinas, ficando mais vulneráveis a novas ondas de contágio da doença. E não
apenas esses países, mas também a economia global.
Na Organização Mundial do Comércio (OMC), África do Sul e Índia lideram uma agenda que busca flexibilizar regras sobre patentes previstas em acordos internacionais, com o objetivo de promover a vacinação em países não desenvolvidos. Ex-chefes de Estado enviaram recentemente uma carta ao presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, em apoio a essa demanda. Na carta os signatários manifestam sua preocupação com o monopólio da tecnologia das vacinas durante a pandemia. Nota-se que economistas renomados – com Prêmio Nobel – também assinaram o documento encaminhado ao presidente norte-americano.
Três
falhas de mercado no setor farmacêutico representam um grande desafio para
economistas no debate. Primeiro, a demanda de vacinas em relação ao preço é
inelástica, ou seja, a decisão dos países para adquiri-las não depende do
preço. Segundo, o consumidor tem poder de decisão reduzido sobre qual vacina
adquirir, dado que se trata de questão de vida ou morte. Terceiro, a barreira à
entrada de concorrentes na indústria farmacêutica é notoriamente elevada. Se há
elevado número de empresas no ramo, também existem diversos expedientes para
formação de poderes monopolísticos.
O
indiano Prabodh Malhotra analisou o impacto, na Índia e em países em
desenvolvimento, do famoso acordo internacional sobre direitos de propriedade,
conhecido como Trips – Trade Related Intellectual Property Services –, em seu
livro Impact of Trips in India, an
access to medicines perspective, que recomendo aos interessados no
assunto.
Prabodh
observa que o Trips é um instrumento jurídico que favorece desproporcionalmente
a indústria farmacêutica, restringe o acesso a medicamentos e tem potencial
para causar mortes desnecessárias em países em desenvolvimento. Nações
desenvolvidas se beneficiaram efetivamente de invenções e descobertas de outros
países, sem limites, mas o Trips nega às nações em desenvolvimento as mesmas
oportunidades.
Cabe
esclarecer que os lucros auferidos pela indústria farmacêutica são importantes
para tornar viáveis investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Sem uma margem
de lucro razoável haveria desincentivo à atividade inovativa. Mas também não se
pode esquecer que o regime de patentes é uma exceção ao livre mercado, um dos
princípios postulados pela nossa Constituição federal. Esse princípio
constitucional supõe que toda exceção deve ser aplicada de forma ponderada,
especialmente quando há abuso econômico na provisão de produtos e medicamentos
durante uma pandemia.
As
patentes e o direito às políticas públicas fazem parte da minha trajetória de
vida pública, especialmente quando estive à frente do Ministério da Saúde.
Coordenei a reforma da Lei de Propriedade Industrial em 2001, que resultou em
maior poder do Estado no processo de concessão de patentes. Antes disso já havia
assinado o Decreto n.º 3.201, de 1999, com o objetivo de inaugurar no Brasil
regras sobre a implementação da licença compulsória, permitindo a quebra
temporária de patentes em casos de emergência nacional ou interesse público.
Essas
reformas foram feitas observando dispositivos específicos previstos no próprio
acordo Trips. Com a licença compulsória no leque de possibilidades, tivemos
condições de negociar forte redução do valor dos medicamentos usados no
tratamento de aids, hepatite e outras doenças. Vencemos a guerra de preços
contra os laboratórios adotando a tese de que ninguém pode gerar superlucros
pondo em risco o direito à vida.
O
arranjo jurídico em vigor no Brasil autoriza o governo federal a licenciar
compulsoriamente a exploração de vacinas ou outros medicamentos patenteados por
qualquer instituição pública ou empresa privada no País. Assim, o principal
obstáculo para o Brasil ter acesso a vacinas e medicamentos não reside na
existência de patentes, mas sim no compromisso e na disposição do governo
federal para enfrentar as empresas que estejam usando tais patentes de maneira
que permita penalizar a população brasileira, bem como para fazer os
investimentos necessários à expansão da produção de vacinas no País.
O
abuso econômico das patentes durante a pandemia deve ser encarado como questão
de Estado. Na batalha contra o novo coronavírus, o Congresso Nacional deve
atuar quando o Poder Executivo revelar-se omisso em relação ao tema,
aperfeiçoando a Lei de Propriedade Industrial na parte que regula a licença
compulsória. Essa é uma agenda global que interessa profundamente aos países em
desenvolvimento na luta contra o vírus.
*Senador (PSDB-SP)
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